MURAL DA DANÇA

Crítica, elogio e distinção

Quinta, 03 de Dezembro de 2020 | por Henrique Rochelle |

Para além de falar bem ou falar mal, a crítica faz distinção, articulações e discute o lugar de uma obra no mundo.

Dia desses eu estava assistindo a um vídeo. Era um grupo de teatro, discutindo uma obra que fizeram há 15 anos, e as críticas que receberam. Quando alguém comentou um dos textos, dizendo que “não teve crítica, só elogio”, eu vi todo um problema.

Claro, crítica inclui juízo, julgamento, avaliação. Mas todos esses são processos de consideração. De ver aquilo que foi feito, o que se poderia esperar disso, e discriminar um lugar pra isso no mundo. Julgamento não é o mesmo que condenação. E avaliação não é o mesmo que reprovação. Crítica não pode ser só o contrário de elogio.

A palavra, em si, vem do grego e de uma raiz do indo-europeu que remetem a peneirar, discriminar, distinguir. Se aqui existe um processo de separação (você peneira pra algo passar e algo ser retido pela peneira), também existe um processo de identificação (peneirando você deixa juntas as coisas de um tipo, e separadas das coisas de outros tipos).

Julgar não precisa do tom religioso de separar os bons dos maus. A crítica não julga pra separar céu e inferno. A crítica julga pra discutir com quem esse trabalho se agrupa. Quais as peneiras em que ele é retido, e quais as peneiras pelas quais ele passa.

E, veja bem, ficar ou passar pela peneira não são valores em si: com peneira se tira as impurezas do açúcar, mas também se garimpa ouro. É realmente uma questão de agrupar, de associar, de comparar, de discernir — outra palavra que compartilha a origem de crítica.

Ai, os interesses ficam melhores. Não é falar bem, ou falar mal da obra. Mas falar de qual é a dela. Qual o tipo de dança que ela trabalha. Qual o pensamento de dança que leva a ela. Com que outras obras ela dialoga, concorda, entra em conflito.

A crítica não é um exercício de elogio e desaprovação, ela é uma proposta de articulações. Como a obra se articula com o seu tempo? Como os artistas se articulam com a sua arte? Como os intérpretes se articulam com a sua proposta? Como os elementos em cena se articulam com a sua construção?

De todas essas peneiras, vêm resultados diversos. A crítica até pode fazer um balanço, tentar dar peso às partes e dizer o quanto isso tudo funcionou. Mas o seu interesse principal está mais nos elementos do que no balanço. Pra além de quantas estrelas alguém daria pra uma obra, o que eu quero saber pela crítica é o que essa obra tem pra me falar, e o como eu consigo entender isso.

Dizer que a obra é ruim, boa, ou excelente serve pra muito pouco. Mas dizer a que ela veio e o quanto ela consegue alcançar já abre espaço pra conversas bem mais interessantes do que a troca de elogios e desaprovações.


* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.

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