MURAL DA DANÇA

Corpo Inacabado: pistas para se encarnar um corpo sem órgãos em dança contemporânea

Imagem: Espetáculo Bípede Sem Pelo de Alexandre Américo, fotografado por Carol Pires | Terça, 19 de Março de 2024 | por Alexandre Américo |

É da natureza do corpo ser imagem (BITTENCOURT, 2010: 51). 
O CsO é o ovo (...) O ovo é o CsO. O CsO não existe “antes” do organismo, ele é adjacente, e não para de se fazer (DELEUZE, 2012: 31).

Na contemporaneidade há duas formas de perceber o corpo: esquecer que a vida é um acontecimento corporal e a outra enfatiza os instintos, o poder mítico, subjetivo e transgressor da carne (NÓBREGA, 2010).

Assim, percebemos o corpo enquanto acontecimento, fenômeno inacabado de forças e tensões inestancáveis, em contínua troca com o meio e a dança contemporânea como organizadora de corpos-imagem que comunicam a partir de uma lógica/poética do sensível.

É imprescindível que afirmemos que o estudo ora apresentado compreende a carne, o mistério do corpo, como ponto de partida/chegada e que somente se faz ao ser imagem em dança. Logo, as reflexões aqui dispostas são da ordem do sensível, sem a pretensão de corresponder as estruturas formativas da lógica racionalista que ainda impera nas ciências humanas.

Um CsO (Corpo sem Órgãos) ou o Corpo de Artaud, Tatsumi, Deleuze e Américo.

O homem é doente porque ele é mal construído. É preciso decidir desnudá-lo para raspar esse microorganismo que o faz se coçar mortalmente, deus, e com deus seus órgãos. Pois ligue-se a mim se assim desejar mas não há nada de mais inútil que um órgão. Uma vez que você o fez um corpo sem órgãos, então você o terá libertado de todos os automatismos e terá recuperado sua verdadeira liberdade (ARTAUD, 1974: 104).

O Corpo apresentado por Artaud, na citação acima, é um corpo descondicionado quanto ao mundo da biologia. Ele propõe em seu fazer artístico, político e estético uma carne liberada das funções viscerais e, logo, institucionais. Quando o sujeito não aprende a fazer o próprio corpo que habita, frequentemente padece, pois para a sua própria sensação de liberdade faz-se necessária a invenção íntima e constante do seu Eu no mundo.

O fazer-pensar dança que propomos aqui, parece-nos um lugar de privilégio no tocante ao exercício da feitura da carne. Para Kuniichi Uno,

Hijikata também descobriu, à sua própria maneira, um tipo de corpo sem órgãos como realidade inegável, mas parece que o corpo sem órgãos de Hijikata não se parece com aquele de Artaud. Se este último pôde realizar o corpo sem órgãos somente na angústia esquizofrênica, sitiado por um regime e por poderes que excluem estritamente o corpo, Hijikata realizou (...) as condições nas quais o corpo sem órgãos era viável concretamente (UNO, 2018: 57).

No encalço de Deleuze (2012) o CsO é um corpo que não se chega, ele já o é. É também um corpo da prática, assim legitimando os processos em dança contemporânea como potentes agenciadores de invenções de corpos outros, uma vez que cada obra, na contemporaneidade, exige uma lógica/poética que a sustente de maneira inerente.

Para cada CsO um procedimento, um caminho que o anima e condiciona. Ele, o CsO, é preenchido pelas intensidades desse caminho. Assim, existem tipos de CsO (DELLEUZE, 2012: 15).

Ainda, o corpo das tensões e desejos, este corpo da invenção de si, não se opõe aos órgãos, mas antes sua conjuntura a qual chamamos insensivelmente de organismo (DELEUZE, 2012: 24). O CsO, libera o corpo dos grilhões culturais dados à priori e abre um espaço-tempo único no qual, arriscamos dizer, consegue viver ao ser imagem e subjetivação no campo estético.

A experiência estética, por sua vez, enquanto contínuo da vida (DEWEY, 2010), habilita a sobrevida e a forja de corpos sem orgãos estruturais, possibilita corpos-imagem. Na dança que sentimos ser, uma dança que assume o corpo como contínuo entre meio e organismo, entre fora e dentro, entre natureza e cultura, entre fazer e dizer, somos impelidos a afirmar que propomos um corpo aberto enquanto metáfora imagética de um fazer-dança que experimenta constantemente a invenção e reinvenção do corpo que é imagem e mídia de si.


PROVISÓRIAS CONCLUSÕES: uma testagem.

Assim, o Corpo Aberto que propomos, é de ordem do contínuo arte-vida. Um corpo inacabado, sem condicionantes e que se faz carne no mundo ao se propor imagem. Mais, o corpo aberto é, em dança contemporânea, um mistério incapturável, pois se forja e se refaz a cada evento-dança.

O corpo aberto é um sentir eterno imagem, é um estar/ser no mundo e quando posto à dança se revela em toda sua força de existência: Glória e Decadência. As Danças Contemporâneas insistem que abramos os corpos, abandonemos as estruturas fixas e sejamos também imagens encarnadas


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A Dança no Espaço Digital: com Marília Pessini e Alexandre Américo. Deus Ateu, 2020. Disponível em:< https://www.deusateu.com.br/textos/danca-espaco-digital-marilia-pessini-e-alexandre-americo >. Acesso em: 23 de novembro de 2020.

BITTENCOURT, Adriana (2012). Imagens Como Acontecimentos: dispositivos do corpo, dispositivos da dança. Salvador: EDUFBA.

DELEUZE, Gilles (2012). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.3. São Paulo: Editora 34.

DEWEY, John (2010). Arte Como Experiência. São Paulo: Martins Fontes - selo Martins.

GREINER, Christine, ESPÍRITO SANTO Cristina, SOBRAL, Sônia (2010). Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança: Mapas e Contextos, São Paulo.

GREINER, Christine; KATZ, Helena (2005). O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume.

LEPECKI, André (2017). Exaurir a Dança: performance e a política do movimento; Tradução Pablo Assumpção Barros Costa. - [1.ed.] – São Paulo: Annablume.

NÓBREGA, Terezinha Petrucia da (2010). Uma Fenomenologia do Corpo. São Paulo: Editora Livraria da Física.

SETENTA, Jussara (2008). O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: EDUFBA.

UNO, Kuniichi (2018). Hijikata Tatsumi: pensar um corpo esgotado. São Paulo: n-1 edições.


*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD

Publicado por :



Alexandre Américo

Artista e Pesquisador



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