Conflito geracional

A minha geração já foi declarada ultrapassada. Na dança, o que é ultrapassado?

Semana passada eu descobri que sou velho. Positivamente, pelo menos a notícia não foi só pra mim: o mundo inteiro ficou sabendo que a geração millennial tá antiquada, cafona, cringe.

Se você não acompanhou a história, o resumo é que alguém perguntou (e alguém respondeu) o que seria vergonha alheia para a Geração Z, entre os hábitos dos millennials. Dois dias depois, todo mundo que nasceu antes de 96 descobriu que é pelo menos uns 70% cringe. Dos hábitos alimentares às séries e livros, quase nada escapou.

O caso, como sempre foi, é que a geração chegando à idade adulta não é mais a nossa. A história se repete desde sempre. É, inclusive, um dos eixos da comédia clássica: a juventude rebelde contra os hábitos de uma sociedade que eles acham caduca.

Foi peculiar porque o assunto já tava na minha cabeça. Há algumas semanas, estávamos em aula falando de gerações da dança moderna, e refletindo sobre esse efeito de tempos e contextos geracionais. Também esses dias ouvi alguém questionando originalidade, inovação, e falando sobre algo que ele dizia ser “ultrapassado” na dança.

Me ficou a pergunta: como se dão os conflitos geracionais artísticos?

Como pesquisador de história da dança, meu interesse nas tradições, nos mestres, naqueles que fizeram tanto antes mesmo de a gente estar aqui, é sempre grande. Olhar pra produção de dança e dizer “isso é ultrapassado, agora é hora de outra coisa” tem aquele problema imenso da insistência em se inventar a roda. A roda está ai, não precisa ser descoberta.

Muito do que se diz inovação é só falta de conhecimento do passado. Mas também existe oposição de confrontamento: não somos diferentes porque não existia alguém antes, somos diferentes porque agora sim entendemos o que é bom, o que é certo, o que é interessante, o que é atual, o que é arte, o que é dança. A doce ilusão da juventude.

O campo da arte de certa forma é um campo de juventude, às vezes eterna. O mesmo sentimento do confrontar a sociedade caduca da Geração Z hoje, move artistas há décadas, séculos, milênios. Se a gente olha a cena atual e vê um tanto de mudança, a gente também pode olhar pra dança do começo do milênio pra ver o mesmo efeito. Ou pros anos 80. Ou pros anos 60. Ou pros anos 30…

O que mais me encanta, um tanto pra além dos confrontos, é a continuidade. Mesmo esbravejando contra, mesmo que sem se entender ou brigando pelo direito de assinar a roda como invenção sua, continua tendo gente dançando.

Até porque só dá pra ter conflito geracional quando a gente tem gerações convivendo, coexistindo. E isso é extremamente positivo, porque a gente tem muito a aprender com as gerações anteriores, e muito a aprender com as próximas. Não pra descobrir a roda, mas pra ela continuar girando.

 

* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.

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Henrique Rochelle

Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.