Dizer quem coreografou uma obra é importante. Dar o crédito correto é mais importante ainda
Depois de uma carreira de mais de 50 anos nos teatros imperiais russos, o coreógrafo Marius Petipa escreveu em suas memórias as tristes reflexões sobre o final da sua vida. Impossibilitado de demitir o coreógrafo, o diretor do teatro Mariinsky tenta afastá-lo, diminuir seus privilégios e prerrogativas, como a escolha de elencos, a contratação de bailarinos, e até informações sobre as obras sendo produzidas e seus ensaios.
Um dos golpes que mais incomodam o coreógrafo é a contratação do primeiro bailarino Alexander Gorsky como coreógrafo, e com a missão de reencenar alguns dos balés do antigo mestre. Dizem que Petipa sai de um dos ensaios da versão de Gorsky de Don Quixote gritando “alguém avise esse homem que eu ainda não estou morto”.
Na mesma época, ele comenta uma produção de Nikolai Legat de La Fille Mal Gardée, que reproduz as variações que Petipa havia criado, sem lhe dar os créditos: “eles esqueceram de colocar o nome do autor no programa. O que vai acontecer depois que eu morrer? Meu nome nunca vai aparecer no programa.”
Corta pra mais de um século depois, e nos programas de apresentações de tantas companhias e tantas escolas, vemos hoje o problema inverso: uma leva de coreografias creditadas a Petipa, um tanto indevidamente. Entre elas, algumas invenções modernas, outras, heranças da reapropriação do seu trabalho, que ele mesmo dizia serem impertinentes versões mutiladas de suas coreografias, que as derrubavam na estima do público em troca de “inovações e mudanças sem sentido nenhum”.
A resposta, frequentemente dada como se fosse uma solução, é ouso de expressões paliativas. “Inspirado em Petipa”, ou “a partir de Petipa”, insistentemente em formas estrangeiras (talvez porque em outro idioma parece ser mais verdadeiro): “d’après Petipa”, “after Petipa”. Fica um aviso de cuidado: leia essas expressões com a mesma desconfiança que guardamos pro filme de terror “inspirado em fatos reais”.
Na maior parte dos casos, o que essas expressões guardam é a tentativa do crédito. Um coreógrafo atual que nos diz “eu estou criando um balé, mas ele não é uma ideia original minha. Essa ideia foi feita já muitas vezes antes, e, até onde eu sei, quem teve essa ideia, de fato, foi um homem chamado Marius Petipa”.
Se isso conta de alguma forma a história da ideia, a história da coreografia continua toda de lado. “D’après Petipa” é um pouco mais bonito (mas um pouco menos específico) do que “eu copiei uma parte disso de alguém que diz que copiou alguém, que diz que copiou um video, que diz que copiou alguém que diz que copiou uma notação, que diz que copiou Petipa”.
Se aos 80 e tantos anos, Petipa olhava magoado a falta de cuidado que tinham com o seu legado, e se incomodava com o medo de sumirem com seu nome, hoje tem muita coreografia dessas que Petipa chamava de versões mutiladas e sem propósito, sendo dançada em festival e em companhias profissionais e levando o seu nome.
Se a autoria e o crédito estabelecem um direito de afirmação da propriedade intelectual (“eu estou apresentando isso agora, mas quem fez isso foi tal pessoa, em tal momento”), ainda falta um tanto de atenção histórica pro caminho inverso (eu não posso fazer o que eu quiser com a ideia de outra pessoa e jogar a responsabilidade e a autoria pra ela).
Coreografia é uma coisa viva, transmitida de corpo a corpo, e eu mesmo gosto muito de ver balé, de ver remontagem, de ver reconstrução. Mas a gente precisa de cuidado pra reconhecer a diferença entre a reconstrução histórica e o telefone sem fio coreográfico.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.
Fale com o autor: Facebook | Twitter | Instagram
*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete a opinião do Portal MUD