Balanchine, a mulher e o mercado de trabalho na dança

Crédito das Fotos: Apollo, coreografia de Balanchine para New York City Ballet

Uma reflexão a partir do podcast The Turning: Room of Mirrors (2023)

Fui convidada pelo Portal MUD para contribuir com uma série especial sobre a relação entre dança, trabalho e maternidade. Por não ser mãe, escrever um texto sobre maternidade é um tanto abstrato para mim. Escolhi, portanto, compartilhar com os leitores uma reflexão a partir do podcast estadounidense The Turning: Room of Mirrors, lançado em janeiro de 2023 por iHeart Radio e Rococo Punch.

O podcast tem como fio condutor a história de George Balanchine, o icônico coreógrafo russo que emigrou para os Estados Unidos e fundou The School of American Ballet em 1934, e o New York City Ballet em 1948. Balanchine coreografou os ballets que caracterizam o que se entende hoje pelo estilo americano de ballet. Exemplos de suas obras são Serenade (1934), Jewels (1967), Apollo (1928), dentre outros ballets abstratos. São priorizadas as formas e linhas harmônicas, corpos atléticos, a agilidade e um uso muito particular da musicalidade.

O motivo por eu querer trazer esse podcast para a discussão é que ele toca em questões de gênero muito delicadas e complexas. A apresentadora e narradora, Erika Lantz, uma ex-estudante de ballet, colhe relatos de mulheres que trabalharam diretamente com Balanchine ou com seu sucessor, Peter Martins, que assumiu a direção do NYCB após o falecimento do coreógrafo e se afastou, em 2018, após alegações de abuso. Os relatos ouvidos no podcast são, ao mesmo tempo, tenros e devastadores.

São tenros porque são vozes maduras que olham para o passado com carinho, amor, e orgulho de tudo que viveram. Porque tinham Balanchine como um mentor paternal, que não só deu a elas a chance de viverem um sonho, como possibilitou que essas artistas pudessem se desafiar artística e tecnicamente. E são devastadores porque, contido nessa figura paterna, havia o lado agressivo, exigente e controlador.

Para usar uma palavra que detesto, mas que foi usada por uma das entrevistadas, Mr. B. era um verdadeiro “galanteador”, um “cavalheiro à moda antiga”. Amostras desse comportamento vão desde o hábito de presentear as bailarinas da companhia que dirigia com perfumes e convidar para jantares privados, até tentativas de beijos e toques inapropriados. Vida pessoal e vida profissional misturavam-se (e o podcast dá a entender que ainda se misturam) na companhia novaiorquina.

Eis a cena que abre o primeiro episódio: Balanchine estava doente, deitado na cama do hospital, quando tocou sem consentimento uma bailarina que o estava visitando. Essa é a reminiscência de Wilhelmina Frankfurt, que trabalhou com ele durante 14 anos no NYCB. Ouvindo o episódio, surpreende-me a ambiguidade na voz de Wilhelmina. Sua fala não é nem um retrato de uma admiração cega, nem de rancor absoluto.

Afinal, como alguém digere uma situação dessas? É possível ouvir no seu relato ponderações, ressignificações e um processo de elaboração que ainda está em curso. Foi a primeira vez que Wihelmina veio a público com o relato de assédio sexual por parte de Balanchine. Peço desculpas pois, se eu prosseguir com a descrição, corro o risco de fazer uma escrita estanque demais de um caso tão cheio de nuances, que apenas uma escuta sensível é capaz de perceber. Mas posso dizer que o que se ouve não é uma voz de acusação, senão a de alguém que está conciliando decepção com gratidão, raiva com carinho, memória com o tempo presente, em um nó difícil de desatar.

Cabe aqui frisar algo importante: vítimas de assédio sexual podem demorar anos para compreender o que aconteceu com elas e categorizar aquilo como violência. Isso tem impacto até mesmo no sistema de justiça, fazendo com que mulheres deixem de denunciar ou de prosseguir com processos contra seus agressores. Por isso, não é de se espantar que haja, no mesmo relato, risos e lágrimas. Além do mais, isso reflete a própria memória coletiva que se faz de Balanchine, em especial nos Estados Unidos, onde ele é considerado também um “pai” para o ballet americano. Da mesma forma que, para uma jovem bailarina, é difícil assimilar que o homem a quem ela “ama como um pai” a assediou, também o é para um país inteiro que o considera um “pai fundador” de sua dança erudita.

E por falar em paternidade, Balanchine nunca foi pai. E também não queria que suas bailarinas se tornassem mães, pois isso seria uma grande distração e obstáculo à carreira artística delas. As entrevistadas mencionam, com uma naturalidade assustadora, que a prática de abortos era comum entre as bailarinas da companhia. Não porque vinha de uma escolha consciente de cada uma delas, mas porque a maternidade significava uma ameaça à continuidade do contrato. Um dos historiadores entrevistados pela série, Jim Steichen, menciona que os diários de Lincoln Kirstein, co-fundador do NYCB, relata que uma das bailarinas tinha tido seu “quarto aborto de Balanchine”.

Havia um sistema de hierarquia bastante forte dentro da companhia, no qual George Balanchine ocupava o topo. As relações eram baseadas em uma admiração exagerada à genialidade do coreógrafo, no medo em decepcioná-lo e na vontade doentia de obter a sua aprovação. Isso se misturava, frequentemente, com a sexualidade. Balanchine admirava suas musas e frequentemente se apaixonava por elas – elas poderiam ter 16 anos, e ele 50, 60. Casou-se com quatro mulheres, todas bailarinas, e todas mais novas que ele.

A pesquisadora Ann Daly (1987) critica a representação de um ideal feminino presente nos ballets de Balanchine. Como ele gostava de repetir, o “balé é Mulher” (“ballet is Woman”). Escrito com letra maiúscula, trata-se de uma idealização da mulher bela, cujos movimentos são traçados por um homem, cujo corpo é conduzido em duetos por homens, e que não age sobre o ballet na forma de sujeito, e sim como objeto do desejo masculino: uma musa, enfim. A obra Apollo é a melhor ilustração disso, retratando um artista que se vê no meio de musas da arte, representadas por belas bailarinas magras e longilíneas. “[Em Apollo] nós assistimos o protagonista virar um artista e um deus”, diz a ex-integrante da companhia, Stephanie Saland. Talvez possamos interpretar o protagonista como o próprio coreógrafo.

Segundo a análise da autora, nos ballets de Balanchine, a mulher é feita para ser olhada, admirada, e sua apresentação é envolvida por uma qualidade erótica. As bailarinas de Balanchine correspondiam a um ideal de feminilidade ligado à função de serem vistas (to-be-looked-at, na conceitualização de Daly).

No que se refere à estética, o coreógrafo tinha uma imagem bem clara (nos dois sentidos da palavra) de como uma bailarina deveria parecer. Longilínea, magra (de preferência com o esterno aparecendo), de cabelos compridos, com um rosto bonito. “Like a peeled apple”, relembra Debra Austin, uma das entrevistadas, “como uma maçã descascada”, em referência à cor da pele. Gosto de como a pesquisadora Theresa Ruth Howard complementa a frase de Balanchine: “mas maçãs escurecem depois de descascadas, de qualquer forma…”

Em fevereiro deste ano, o seminário Whose Ballet?, organizado pelo Hemispheric Institute da NYU, foi composto por seis pesquisadores da dança negros com atuação nos Estados Unidos. Eu assisti a esse seminário de maneira online, e tive a forte impressão de que o pensamento e a produção de ballet que o país vive está passando por uma revisão da contribuição de Balanchine pelo olhar de grupos minoritários, como os negros, as mulheres e a população LGBTQIA+. Nesse sentido, a apresentação de Theresa Ruth Howard envolveu a análise da influência da dança negra americana (o jazz e o sapateado) no repertório de Balanchine, argumentando que o que foi considerado o estilo americano de dançar ballet não provém de Balanchine, um coreógrafo branco, e sim das danças da população negra daquele território.

Conforme documentado em carta, Balanchine e Lincoln Kirstein almejavam ter em seu elenco “16 dancers, half women, half men, half white and half negro” (16 dançarinos, metade mulher, metade homem, metade branco, metade negro). Mas esse plano nunca foi concretizado. Room of Mirrors trata de expor as contradições do coreógrafo, que se inspirava numa dança negra, mas cujo ideal de beleza era o de corpos brancos; que teve como primeiro-bailarino e afilhado artístico o célebre bailarino negro Arthur Mitchell, mas que ainda assim impunha uma série de obstáculos para a entrada de bailarinas e bailarinos negros na companhia.

Longe de “passar pano” para Balanchine, essa ambiguidade nos dá uma dimensão mais humana, tanto dele, quanto das entrevistadas. Dele, porque ele sai dessa posição de gênio intocável que ele ocupa no nosso imaginário. E delas, porque, vítimas ou não, são dotadas de agência e poder de decisão sobre sua arte e sua vida. Nem heroínas, nem vilãs; nem santas, nem putas.

Só a título de comparação: eu ouvi o podcast brasileiro O Ateliê, por Chico Felitti. Ele acompanha a denúncia de uma artista a respeito do diretor de uma escola de artes visuais no centro de São Paulo, que usava métodos abusivos em nome de uma pretensa “arte”. Na minha opinião, esse aspecto da ambiguidade e complexidade de sentimentos foi mal trabalhado, quando comparado ao Room of Mirrors. A narrativa de Felitti começa pintando Mirela Cabral, a artista autora de denúncia, como uma patricinha que pouco entendia de arte, e que teve sua ingenuidade e ignorância aproveitadas por Rubens Espírito Santo, que lhe tomou dinheiro e tempo, e violou seu consentimento diversas vezes. Isso acabou gerando reações desastrosas, incluindo ataques à artista nas suas redes sociais, as quais o podcast tenta inverter no último episódio. Já Rubens é retratado como um excêntrico, um charlatão; o podcast perdeu, assim, a chance de convocar uma reflexão sobre autoridade e abusos no meio artístico, dos quais ele é um marcante exemplo, mas certamente não é o único.

Comparando os dois podcasts, vejo que o estadounidense acertou em ter como apresentadora alguém que foi ela mesma bailarina e que teve suas questões de saúde mental e física ligadas à sua decisão de parar de dançar. Por essa razão, ela faz uma condução muito sensível das entrevistas. Nós, enquanto escutamos, em vez de encarar a contradição como um motivo de duvidar da vítima, somos conduzidos a nos identificar com ela justamente porque ela é contraditória, como nós mesmos somos em tantos momentos da nossa vida. Nos episódios finais, a apresentadora inverte os papéis e ela é a entrevistada da vez. É interessante ver como ela se coloca dentro da história e de que maneiras sua vida é atravessada pelo tema do podcast. Somos levados a entender que o problema não está apenas na figura de George Balanchine, e sim que é uma questão que perpassa o ensino e prática do ballet clássico nos Estados Unidos até hoje (e, por que não, aqui no Brasil também?).

Nos últimos episódios, Lantz reflete: “estou querendo cancelar Balanchine?” E a resposta é que isso seria impossível. Mesmo tendo ouvido os relatos, mesmo tendo lido livros e artigos a respeito, ela ainda se emociona quando se senta para assistir uma coreografia de Balanchine. Eu respeito seus afetos contraditórios e sinto que eles ecoam em mim, na minha trajetória profissional e pessoal. A música de Serenade é inserida em alguns episódios. Ela transborda do fone de ouvido e parece que toma a sala toda e meu corpo junto. Lembrou-me da primeira vez que eu assisti o ballet: em uma virada cultural em São Paulo, numa noite de inverno, num palco no centro da cidade. Devia ser 2009, por aí, e eu, uma estudante de ballet cheia de sonhos e esperanças, fui assistir a São Paulo Companhia de Dança pela primeira vez. Estava frio e eu fiquei em pé, apoiada na grade, porque as cadeiras já tinham sido ocupadas. Começou aquela música linda. Várias mulheres em pé, espalhadas pelo palco, com seus figurinos brancos que pareciam azulados com a luz. Foram instantes mágicos. Quando acabou, tive a certeza de que queria dançar naquela companhia.

Ativando uma lembrança afetiva, o podcast agora me coloca dentro da história. Eu também sou instigada a lidar com as minhas próprias contradições que envolvem sentimentos tão delicados e embaralhados. Como eu me relaciono com Balanchine? Que significados ele tem pra mim?

Acho que a gente não sabe bem o que fazer com obras geniais de homens que as criaram às custas do trabalho físico e criativo de outras mulheres. Mas tenho a certeza de que a riqueza está em como nós reinterpretamos essas obras à luz da nossa própria história e referenciais.


Poscast O Ateliê. Produzido por Chico Felitti. Lançado em janeiro de 2023.

Podcast The Turning: Room of Mirrors. Produzido por iHeart Radio e Rococo Punch. Apresentado por Erika Lantz. Lançado em janeiro de 2023. Transcrições disponíveis em: <https://www.rococopunch.com/turningtranscripts>

DALY, Ann. The Balanchine Woman: Of Hummingbirds and Channel Swimmers. The Drama Review: TDR 31, no. 1 (1987): 8–21.

DIXON-GOTTSCHILD, Brenda (org). Whose Ballet? Diasporan waves and Black Genealogies for Dance. NY: Hemispheric Institute. Seminário online. 13 fev. 2023. Disponível em: <https://hemisphericinstitute.org/en/events/whose-ballet.html>

*Este texto é de responsabilidade da autora e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.

Carolina Paes de Barros

Carolina Paes de Barros

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Bailarina, redatora freelancer, feminista e Bacharel em Ciências Sociais. Iniciou seus estudos em dança em São Paulo, com Ilara Lopes, e seguiu para a Especial Academia, com direção de Guivalde de Almeida. Em 2017-18, participou da São Paulo Companhia de Dança, sob a direção de Inês Bogéa. Hoje, está buscando aprimorar-se artisticamente e criar pontes de diálogo entre a dança e as Ciências Sociais, curso em que se graduou em 2017, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Nesse período, realizou uma Iniciação Científica com o tema “Perfomances de gênero na dança clássica”, pelo Departamento de Antropologia da USP, com apoio do grupo de pesquisa NAPEDRA e orientação de John Cowart Dawsey. Tem interesse em criar redes de troca de informação sobre dança, e usar a escrita como ferramenta para relacionar história, política, sociologia, antropologia, ballet clássico, dança contemporânea, estudos do corpo e feminismo.