No meio do quase-fim-do-mundo, uma gente teimosa insiste em fazer dança, e pra alegria do público, continua criando arte. Obrigado.
Com o cancelamento de contratos, temporadas, aulas e cursos, os artistas da dança têm enfrentado situações de crise e de emergência, suspensão de atividades e apresentações, interrupção de processos criativos e apagamento completo de agendas.
No pânico, o primeiro esforço é o da sobrevivência. É instinto. Com o público todo em casa, as instituições voltaram seus olhares para as transmissões. E ai vem a pergunta: quem consegue produzir conteúdo pra ser transmitido?
Como esperamos que os artistas da dança articulem equipes remotas e processos de criação, quando lhes falta o básico da sobrevivência (?) — em matéria de arte, mas para muitos também em questão de indivíduo.
A pressão de criar, e a possibilidade de estudar novas formas, a partir da câmera, para o vídeo, se juntam ao desgaste da sobrevivência. São processos demorados, são técnicas específicas. E a necessidade de conteúdo é imediata e bate à porta, como condição da sobrevivência.
Num respiro, vieram algumas respostas artísticas, ainda que não em arte: vamos conversar sobre, vamos comentar trechos, vamos falar de processos, vamos falar do fazer dança. Na sequência, vieram os acessos aos repertórios, e agora chegamos à maratona das lives.
O formato, as plataformas, o jeito de assistir, aproximaram a experiência com a dança da experiência das muitas reuniões virtuais de todos os dias. E é com esse corpo, cansado e indisposto, que às vezes chegamos nelas.
O efeito é triste e complicado. Como encontrar novas dinâmicas de lidar com o público e de lidar com a obra de dança? Como adaptar séculos de experiência estética com a presença para a distância? Como transformar as técnicas corporais e as técnicas de palco em formatos para o vídeo?
As questões insistem, todos os dias, a cada reunião, e a cada nova live. Gritam para o público e gritam para os artistas. Mas, dispersos pelo desespero imediato da sobrevivência, acabamos deixando um pouco de lado. É isso. É o que tem pra hoje. É o que dá pra fazer nessa situação. Ficamos entre o elogio da resistência e o remorso do sobrevivente.
Mas de repente, numa madrugada, tirando o atraso de lives perdidas, um suspiro aliviado: olha, olha aquilo lá. Tem uma coisa ali. Não é “mais uma live”, não é só “o que tem pra hoje”. É bom. É interessante. É dança… E a gente se permite dormir com um pequeno sorriso, porque a dança continua. Pura e deliciosa teimosia.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.