Escrevi há um tempo sobre um ocorrido corriqueiro. Eu estava alongando numa praça perto de casa, já anoitecendo, no crepúsculo. Eu brinco que faço isso no anoitecer para disfarçar e me esconder um pouco dos olhares curiosos, porque a gente que é da dança acaba chamando atenção mesmo sem querer: qualquer corrimão vira barra e qualquer alongamento vai virando dança. E a menininha, que passeava com o pai não aguentou e puxou papo: você faz balé? Eu respondi: mais ou menos, porque eu não ia explicar ali o que era Dança Contemporânea, essa dança tão conceitual que nem os adultos entendem muito bem do que se trata. Me ative a perguntar: Por quê? Você gosta de balé? E ela respondeu: Não, eu fazia mas doía.
Ela não devia ter 10 anos de idade. Eu queria saber porque doía, mas não deu tempo. Só respondi: pois se eu não fizer isso aqui, aí que dói! Ela riu… O pai já ia adiante, ainda bem, quando ela me perguntou: você faz aquilo? E me mostrou a intenção de movimento de um espacate. Faço, respondi, mas vai parar o trânsito! O que é isso, ela perguntou. Nada, respondi, brincadeira minha. Estava escuro. Ninguém mais viu, mesmo. A doida aqui abrindo um espacate para encantar a garotinha. Tem coisa que só os amantes da dança sabem a alegria de compartilhar.
Para além da nossa aventura vivida, a dor narrada, assim, de forma bruta por uma criança fez muita gente que leu meu texto vir me contar de experiências parecidas que elas mesmas tiveram sobre a dor que aparece com encurtamentos musculares para os quais se exige pronto alongamento e, por vezes, a agressividade e despreparo de alguns professores transformam em distensões e marcas corporais e subjetivas.
Fiquei pensando que para essas pessoas a experiência da dança não foi efetivamente processada, em função de algum procedimento equivocado de preparação corporal ou mesmo de sua completa falta. Em alguns espaços mais tradicionais de ensino de dança ainda aparece o culto à um alongamento excepcional para capacitar o corpo à dança, e muitas crianças (e até mesmo adultos) criam uma expectativa de um alongamento sem muito empenho na constância e dos cuidados para sua realização. Um espacate “zerado” que muitas meninas sonham pode ser o motivo de uma dor por distensão levada para a vida toda.
Percebi pelos comentários ao meu texto que para muitas e muitos de nós, a dança acaba por virar uma forma fixa, uma pose, aquilo que eu acho bonito, mas não sei fazer porque dói. Aquilo que meu corpo não consegue fazer, num parâmetro sempre fora de mim e inalcançável, nos mantemos.
Mas, se eu te disser que dançar não é nada disso?
Para além dos alongamentos, métodos e técnicas há a Dança. E há o dançar. Visceral. A prova disso é a sensação que nos provoca no plexo cardíaco estar próximo à um tambor ou um conjunto percussivo. Há um dançar interior, miúda, de quando a felicidade chega e o corpo sacode de regozijo. Há uma dança que é reconexão como o mistério e o sagrado, conhecida das sacerdotisas às épocas matriarcais ou mesmo pré-históricas. E há um saber primordial sobre dança que pode e deve ser acessado por todos e que é acessado não rara facilidade pelas crianças, até as mais pequeninas. Somos capazes de dançar as nossas alegrias, o maravilhamento e o espanto:
“Temos que partir do irredutível fato de sermos um corpo que procura sobreviver – com prazer e alegria – em meio aos perigos do mundo, e quando temos consciência de que somos capazes de enfrentar e até de tirar proveito dessas ameaças, um sentimento de espanto, de maravilhamento (vale dizer, e beleza) nos sobrevém. A partir de tal maravilhar-se, de tal espantar-se com as coisas e nossas relações primordiais com elas é que se podem então erigir todos os saberes. Todo conhecimento principia no espanto”. (DUARTE JR., 2012, p. 363)
Dançar é sobretudo ouvir o corpo. É estar tão em si que o corpo se expande. É desenhar o movimento no espaço num gesto imaterial. É estar em si e no outro porque ressoamos e comungamos afetos transbordados. É se apropriar de suas potências latentes para o movimento e para a criação, e dessa forma, alargar experiências e forjar saberes.
Ao dançar, acessamos no corpo uma fonte – de formas e forças – que proporcionam percepções diferenciadas do estado ordinário do corpo: outros estados psicológicos, emocionais, fisiológicos que possibilitam a invenção e a reinvenção do movimento e de si. É com a consciência ampliada e a energia dilatada que produzimos autonomia de movimentação e encontramos nossa própria sabedoria primordial da dança e do dançar.
Assim, não só o artista, mas todos aqueles que desejam dançar se preparam, se reinventam, e ao mesmo tempo, dançam. E a Dança se faz e se reinventa através do dançarino para além das formas numa vivência genuína e significativa.
DUARTE JR, J. F. Entrevista com João Francisco Duarte Júnior. Entrevista concedida a Carla Carvalho. Revista Contrapontos – Eletrônica, Vol. 12 – n. 3 – p. 362-367 / set-dez 2012. Disponível em: <http://www6.univali.br/seer/
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