A relação entre Dança e animação em Love Death and Robots

No dia 20 de maio de 2022, estreou a terceira temporada de Love, Death and Robots, produzida pela Netflix. A série de animação atribui seu nome aos temas de cada episódio, sendo independentes e sem necessidade de acompanhar todas as temporadas de modo sequencial. E que em cada episódio possa ser explorado novas formas de narração através da animação.

Foi então que assisti ao episódio da terceira temporada, chamado “Fazendeiro” com título original chamado “Jibaro” (a origem da palavra vem de Porto-Rico, que se refere a agricultores auto sustentáveis), criado pelo espanhol Albert Mielgo. A sinopse do episódio, segundo a Netflix, é a seguinte: “Um cavaleiro surdo e uma sereia mitológica se envolvem em uma dança mortal, repleta de sangue, morte e riqueza”. A obra mescla múltiplas linguagens artísticas como cinema, animação e dança contemporânea para conseguir contar a sua história. E ao assistir essa mescla, não pude deixar de querer escrever e conversar sobre como é interessante a dança como dramaturgia da obra.

O filme é considerado não-verbal. De acordo com o artista, a escolha da ausência de narração, contribui para um caminho de compreensão mais dúbia e abstrata do enredo, sendo assim, o desejo principal foi que cada um que assistisse tirasse sua própria conclusão. Isso acontece não apenas pela dubiedade da situação, mas sim pela forma que os personagens se comportam, as escolhas diante do conflito e a expressão corporal configuram que tipo de pessoas são.

Para ilustrar melhor vamos para os personagens principais, temos o cavaleiro surdo, em uma espécie de cruzada em uma floresta, o interessante é que estamos inseridos em suas limitações sensoriais, o desenvolvimento da dramaturgia se entrelaça entre a sonoplastia, o estilo da animação e a própria trama.

Nesse cenário, próximo ao lago, surge a sereia, uma figura mitológica que, de acordo com o autor, se baseou em várias culturas como: Índia, Norte da África e Europa oriental. Combinando todos os tipos de jóias e bens que as mulheres utilizam em cada cultura. A ideia foi então criar um ser mitológico repleto de ouro e tesouros, e que quase não fosse possível ver a mulher por detrás disso. Segundo o autor, em entrevista a Deadline, a figura da sereia é a persona da Beleza em sua frente, e isso te cega e faz com que não se importe se há uma pessoa real ali ou não.

A sereia ao aparecer para o grupo inicia uma sequência de movimentos ritmados seguido de um agudo, um canto afiado que ao mesmo tempo atiça todo o grupo de cavaleiros, e os envolve em uma ação alucinante, uma multidão atacando-se em sentido ao som. O único que é salvo desse canto, é justamente o cavaleiro surdo.

Diante dessa situação, o cavaleiro foge. A sereia não compreendendo o porquê dele não ter caído na graça de seu canto, o observa, e ao passar da noite, enquanto o cavaleiro adormecia, ela o encontra e então inicia uma relação não somente um interesse sexual mas também um desejo ganancioso.

E agora não vou dar mais spoilers e quero focar em alguns assuntos, o primeiro é sobre as camadas dramatúrgicas da obra. Juntas criam uma experiência que confunde os sentidos de quem assiste, deturpa nossa noção de como história é convencionalmente contada, por exemplo: a sonoplastia é um elemento narrativo, cria-se a partir disso um estímulo sensorial na experiência dos espectadores, somos inseridos de um lado, a todos os sons da floresta, os passos dos cavaleiros, o tintilar dos metais das armaduras e do ouro da sereia.

E ao escutarmos o som do canto da sereia pela primeira vez, a obra soma esses elementos sensoriais com música eletrônica, e é muito rico ver a exploração de estilos e estímulos sonoros somarem tanto com a cena. E por outro lado, temos uma direção artística que trabalha ângulos que nos fazem duvidar se de fato, estamos diante de uma animação. E ainda sobre a sonoplastia, somos convidados a entender a perspectiva do cavaleiro surdo, com sons abafados e imagens abafadas diante da situação de encontro com a sereia.

São esses elementos que enriquecem a trama, criando através dos estímulos e dramaturgias uma orquestra através dos desdobramentos dos conflitos e construções psicológicas dos personagens.

 

Dança em Jibaro

A dança criada em Jibaro, expressa as relações entre os personagens. Os homens atraídos pelo canto agudo, e nesse puxar os homens através da voz, cria-se uma dança entre os corpos que são empurrados, que buscam fugir. E temos a sereia que combina o seu movimento com sua pele de ouro e ornamentos de joias, criando uma sinestesia espiralada. Sem dúvida o uso de sua pele/ornamentos criam uma sinuosidade fantástica entre movimento e “vestimenta”.

Em entrevista Albert Mielgo acentua que toda a dança foi realizada através de “keyframe animation” ou seja, não há uso de CGI, e para isso, convidaram para a produção a coreógrafa Sara Silkins, para construir referências de movimentos que expressassem as motivações dos personagens através de seus gestos e movimentos, e assim como dançam nessa situação. Para isso, foram chamados os dançarinos: Megan Goldstein, Raymond Ejiofor, Judson Emery e Girvan Bramble (Jibaro), que em duas semanas foram coreografados, e gravados as cenas como referência de movimentação, a equipe do curta contou com 72 pessoas para animação. A dança concebida em Jibaro, nas palavras do autor, é a partir de como os personagens comunicam seus sentimentos dançando.

Sara Silkins

Como exemplo, foram estudados como referência para os cavaleiros as artes marciais, e como ocorre o controle corporal dos movimentos, o que o autor conclui que isso traz ainda mais violência dentro do contexto da obra. E que toda dança foi realizada em diferentes ângulos, referenciando também a própria linguagem cinematográfica com close ups no rosto e olhos dos personagens, e assim surge a movimentação e animação da obra.

O interessante da dança concebida para a série, é fruto da própria motivação da coreógrafa, que atualmente é diretora artística da Glorya Kaufman arts Center (Los Angeles, EUA). Sara, tem como pesquisa artística a multidisciplinariedade entre dança e cinema, o que demonstra como foi tão bem trabalhado a relação dos gestos, animação e concepção fílmica da obra. A coreógrafa em sua pesquisa explora o conceito de “Mind-body connection” (Conexão corpo-mente) em relação a doenças mentais, para ela movimento é a expressão singular de nossos estados internos, e pode comunicar informações físicas tanto inconscientes quanto conscientes, a partir de gestos, pelo espaço e a tensão contida das memórias corporais. E em suas palavras “Eu pretendo que o espectador tenha uma experiência visceral que os leva a questionar sua própria linguagem física”.

Em Jibaro, a visão coreográfica de Sara, propôs uma dinâmica muito vivaz entre a sereia e o Cavaleiro surdo, que têm seu ápice na cena final, que cria-se um duo, que expõe trocas de forças entre corpos sinuosos e fortes, combinando ângulos que não seriam possíveis de serem trabalhados em palcos, e a partir de uma situação mística que sob a linguagem da animação deixa ainda mais belo de assistir. A dança final é um diálogo trágico entre ganância, perversidade e vingança, e esses sentimentos geram uma dança angustiante, violenta que se contrapõe ao corpo másculo e ao corpo sinuoso e gracioso, é uma dança que se gerou através do conflito psicológico e narrativo da obra.

Por fim, a experiência de assistir Jibaro é uma boa demonstração da pesquisa de Sara Silkins, e expressa também como a dança é um elemento narrativo e dramatúrgico que muda toda a concepção de obra artística. A multidisciplinaridade e multi linguagem artística abre espaço para explorar mais relações entre uma linguagem a outra, e nessa soma, fica o melhor de cada linguagem, em uma mescla que põe em xeque a percepção sensorial e narrativa dos espectadores. Foi uma surpresa ver essa soma em uma série sci-fi e ainda mais pensar que um dia iria poder compartilhar isso por aqui. E principalmente em explorar novas referências para a dança contemporânea!

Boa experiência!

*Este texto é de responsabilidade da autora e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.

Gabriel Paleari

Gabriel Paleari

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Copywriter, colunista de dança, sócio da N Produções Culturais Ltda e fundador da Estranha Companhia de Dança-teatro. Bacharel em Artes Cênicas pela UEL, atua nas áreas de criação artística, produção cultural e marketing digital. Desenvolve desde 2014  sua pesquisa ‘Notas Nômades: Cartografia do CsO em Antonin Artaud’’ que investiga o conceito do CsO sob a perspectiva biográfica de Artaud, a qual obteve publicação do artigo no dossiê Antonin Artaud na revista Ephemera. Com seu trabalho artístico fez parte dos festivais como: FILO, Building Bridge Art Exchange, Kinoarte,DANCEP (Curitiba-PR), Festival de Inverno da Universidade São João Del Rei-MG, Festival de dança de Londrina, e a_ponte do Itaú Cultural (SP) . É colunista de dança do PORTAL MUD (Museu Virtual da dança). Em 2023, foi em nome da Estranha como representante sul do país para o MIC- Mercado de Indústrias Criativas do Brasil, e tem como desejo expandir o mercado independente nacional com obras experimentais e de cunho de pesquisa.