Separar o Joio do Trigo

“O Reino dos Céus é como alguém que semeou boa semente no seu campo. Enquanto todos dormiam, veio seu inimigo, semeou o joio no meio do trigo e foi embora. Quando o trigo cresceu e as espigas começaram a se formar, apareceu também o joio. Os servos foram procurar o dono e lhe disseram: ‘Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde veio então o joio?’ O dono respondeu: ‘Foi algum inimigo que fez isso’. Os servos perguntaram ao dono: ‘Queres que vamos retirar o joio?’ ‘Não!’, disse ele. ‘Pode acontecer que, ao retirar o joio, arranqueis também o trigo. Deixai crescer um e outro até a colheita.” (Mateus, 13: 24-30). A parábola bíblica do “O joio e o trigo”, é uma das mais conhecidas, uma parábola tem como pressuposto passar ou ocasionar reflexos de algum ensinamento e questões inerentes à vida.

Entre os dias 02 de outubro e 09 de novembro de 2024 está em cartaz a audiotour “TUDO GENTE”, peça produzida através da parceria da Cia Dxs Terroristas e Memória Carandiru. A obra tem como narrativa fundante o fatídico massacre do Carandiru, ocorrido em 02 de outubro de 1992 na cidade de São Paulo. A peça é apresentada no Parque da Juventude, ao lado da estação de metrô Carandiru da linha azul, onde antigamente era A Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru. Durante a audiotour não vamos ressignificando os espaços, na verdade vamos os conhecendo, pois nos é relatado onde ficava cada pavilhão, como era esse complexo penitenciário e suas estruturas. O Parque da Juventude recompõe os seus escombros e volta a se tornar a Casa de Detenção de São Paulo.

Os espaços contam histórias, durante a apresentação passamos por um parquinho onde tinham crianças brincando. Por ironia do destino ou não, na verdade acredito que seja o espaço querendo contar a sua história, os momentos se casaram. Enquanto o narrador relata como era o dia de visitas na Casa de Detenção, com as famílias, filhos, crianças e como aquele momento era importante para as pessoas que habitavam aquele local, ao mesmo tempo as crianças invadiram a peça, como uma ambientação.

No início da peça, cada apreciador-participante recebeu uma pedra, que foi carregada durante a apresentação. Cada uma dessas pedras vinha com cicatrizes: os nomes, daqueles que foram assassinados no massacre de 02 de outubro de 1992. Ao cortarmos o córrego Carandiru fomos interrogados com duas opções, a primeira: podíamos jogar a pedra no córrego e ali terminava a peça; segunda opção: seguíamos com a pedra e continuaremos a desenvolver a história. Nas palavras do narrador “separar o joio do trigo”. A narrativa se valeu de uma metáfora advinda da parábola bíblica supracitada para que nós apreciadores refletíssemos sobre a questão do encerramento, se somos pessoas que vamos carregar essa pedra que não é leve muito menos fácil, mas mesmo assim estarmos juntos pelo fim das prisões ou se não vamos levar esse peso para nós. Confesso que fiquei procurando pedras no córrego, não encontrei nenhuma e lanço a hipótese que nenhum apreciador-participante tenha jogado. A questão que me fica é, será que todos que não jogaram a pedra vão realmente tomar como pauta para suas ações o fim das prisões? Nesse sentido a audiotour me fez questionar, se assim como na parábola supracitada o joio também não poderia continuar junto ao trigo, pois se a pessoa se propor a jogar a pedra a obra acabaria naquele momento para ela, ao optar por continuar com o peso da pedra outros espaços lhe são apresentados e especialmente o joio precisaria ouvir a obra até o final e se surpreender com a materialização da audiotour que nos é revelada.

Sigo com os escombros fabulados pela audiotour “TUDO GENTE” me questionando se minhas ações são o joio ou o trigo e também com o olhar atento para a Cia dxs Terroristas, que já conheço e admiro o trabalho a qual giram em torno das questões que permeiam pessoas trans em situação de rua e/ou sobreviventes ao sistema prisional. E do Memórias Carandiru que vem promovendo ações que visam difundir informações e memórias acerca de um dos acontecimentos mais vergonhosos e cruéis da história brasileira.

Nailanita Prette

Nailanita Prette

Ver Perfil

Mestre em Artes – linha de pesquisa Artes da Cena, pela UFMG; licenciada e bacharel em Dança pela UFV; técnica em Dança pela ETAM Santa Cecília. Artista das Artes do Corpo com ênfase em Dança Contemporânea e Performance, com trabalhos autorais e com artistas parceiros. Professora de Dança e Artes na rede pública de ensino e no curso técnico de Artes Visuais, ambos da Secretaria de Educação de Minas Gerais. Pesquisadora em Dança e Teatro Físico com interesse nas temáticas: Analise do Movimento, Técnicas Corporais, Poética do Corpo, Processo Criativo em Dança, Improvisação em Dança e Modos de Mover Contemporâneos. Se interessa na teorização da Dança a partir da prática, do corpo em movimento, uma das vertentes de trabalho que vem se arriscando é a Critica em Dança.