Corpos dissidentes e poéticas da denúncia: uma dança que não se esgota

Foto: Brunno Martins

Por Adriana Celi Castelo Gomes

O espetáculo “Reino dos Bichos e dos Animais, Esse é o Meu Nome”, apresentado na Bienal Sesc de Dança 2025, em Campinas 04 de outubro de 2025, pelo coletivo CIDA (coletivo Independente de Artistas do Rio Grande do Norte), tece em cena uma trama que entrelaça dança, teatro e poesia, trazendo à tona as tragédias vividas por corpos historicamente marginalizados. O espetáculo dá luz aos corpos dissidentes e suas particularidades, não só para presença cênica, mas sim, como matriz criativa e estruturante de toda pesquisa para composição da obra, criando outros modos de presença.

O Coletivo CIDA – Coletivo Independente Dependente de Artistas, é um núcleo de dança contemporânea fundado em 2016 em Natal (RN) por Arthur Moura, René Loui e Rozeane Oliveira, reunindo artistas pluriétnicos, com e sem deficiência de diferentes regiões do Brasil. O grupo se destaca no cenário nacional por integrar acessibilidade, pesquisa coreográfica e enfrentamento político, construindo obras que tensionam os limites entre corpo, cena e norma.

O elenco é formado por artistas com e sem deficiências, de diferentes gêneros, raça, e faixa etária, e sob a direção artística de René Loui, que constrói, a partir dessa potência plural, o segundo espetáculo da Trilogia em Dança-Tragédia do coletivo.

A dança tragédia proposta pelo grupo, busca romper com a representação das tragédias eurocêntricas, trazendo para cena as tragédias do cotidiano, principalmente dos corpos que são estruturalmente excluídos pelos sistemas normativos da sociedade. Questões urgentes que não se esgotam, tragédias diárias, que seguem invisibilizadas e silenciadas socialmente.

Num tom de denúncia, a obra se organiza em capítulos cênicos que se revelam numa constante metamorfose, e trazem como fio dramatúrgico as histórias de vida do elenco, e a potência poética das palavras de Stella do Patrocínio (1941-1992), mulher negra que viveu quase três décadas em um manicômio. Palavras que transcendem a poesia e ecoam pelo espetáculo como forma de força e resistência, e reverberam em atravessamentos permeáveis dando contorno para a dança e o teatro.

O espetáculo se inicia com elenco desnudo no centro do palco. É possível enxergar a nuances do coletivo que revela aos poucos a singularidade de cada artista.

À frente do grupo o intérprete de libras, também nu, reforça a ideia de um único corpo, de uma única voz, com  a diversidade e a coletividade como grande pano de fundo, assumindo uma narrativa cênica.

Os corpos passam a ocupar o espaço cênico em fluxos de movimentos de fisicalidade intensa que transitam entre a resistência e a entrega, construindo códigos próprios que rompem padrões tradicionais de concepções coreográficas pautada na domesticação do corpo. Os movimentos em repetição, atrelada a alternância dos artistas em cena, permeada por uma sonoridade e iluminação com muitas variações extremas, traz a percepção de um ciclo vicioso de sentimentos conflitantes vividos repetidamente pelos intérpretes.

Organiza-se uma fila de cadeiras de escritório ao fundo do palco, e aos poucos cada intérprete senta-se e começa se vestir com peles fictícias, a descrição do processo de vestir-se acontece de forma individual e minuciosa, aos poucos os intérpretes vão construindo suas figuras sociais.

No terceiro capítulo cênico intitulado: “Somos todos Stella” as palavras de Stella do Patrocínio inundam o palco e passam a ecoar e compor com os solos coreografados. Os solos surgem em cena como um transbordar das violências vividas nas histórias de vida de cada intérprete. A convenção da família, as máscaras sociais, as palavras violentas, os preconceitos estruturais, atravessam os movimentos e assumem uma narrativa teatral, onde a palavra explícita consolida a dramaturgia da obra, rompendo a separação entre cena e plateia.

Neste cenário, durante todo o espetáculo, a acessibilidade ultrapassa a sua funcionalidade inclusiva, compondo a dramaturgia tornando-se mais uma camada cênica, na medida em que chama atenção do espectador sobre a urgência de educar os sentidos para outros modos de fruir.

Existe um acúmulo de estímulos que se apresenta também como escolha dramatúrgica, o excesso, a exaustão. Os extremos compõe as diferentes narrativas que se a apresentam, como um grito que não será mais silenciado.

Nota-se um incômodo que atravessa visivelmente o público, por meio da exposição de tantos processos de desumanização, olhares apreensivos, o clima de constante tensão, ora emociona, ora desestabiliza a ponto de algumas pessoas se retirarem da platéia.   O espetáculo traz à tona grandes feridas sociais, que decorrem de inúmeras tragédias pessoais vividas diariamente por corpos dissidentes, que ainda seguem naturalizadas socialmente. A naturalização cotidiana dessas violências — sejam eles de gênero, raça, sexualidade ou deficiência — está profundamente enraizada em estruturas históricas e simbólicas que sustentam o regime cisheteronormativo, colonial e capitalista. Essa naturalização se expressa em formas múltiplas e cotidianas de exclusão, controle e silenciamento social.

O espetáculo cria espaço para uma experiência cênica potente, e revela- se como um importante manifesto individual e coletivo, contra uma sociedade profundamente adoecida, onde as práticas e situações de agressão, de exclusão e negação de direitos são aceitas e naturalizadas, e no qual  a “suposta” loucura  é que se apresenta como território crítico, de fricção e de denúncia. Também apresenta um posicionamento político, no qual a resistência amplia as fissuras estruturais da sociedade e faz emergir novos modos de presença para o campo das artes da cena.

 

Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães e da Profa. Dra. Cássia Navas alves de Castro, no Programa de Pós- Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 14ª Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.

 

Adriana Celi Castelo Gomes

Gestora Cultural, artista da dança e pesquisadora. Doutoranda em Artes da Cena no IA Unicamp. Mestra em Arte-educação pelo IA UNESP. Graduada em Educação Física e Pedagogia, pós-graduada em Linguagens da Arte pela USP e Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona. Atuou como diretora de cultura na SECULT de Barueri, e como coordenadora de área dos Cursos Livres e de Extensão Cultural da São Paulo Escola de Dança. É presidente fundadora do Instituto Cultural Artevida.

PPG Artes da Cena/UNICAMP

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O Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena tem como objetivo a formação de pessoal qualificado para atuar na pesquisa e no ensino de campos pertinentes às artes da cena, quais sejam, o teatro, a dança, a performance, em interlocução ou não com outras artes presenciais, promovendo difusão de conhecimento mediante a colaboração de seus pesquisadores junto a periódicos especializados, eventos científicos da área e, no que concerne à extensão e socialização do conhecimento, apresentação pública dos espetáculos e performances produzidos como fruto das pesquisas.