Um novo ano traz várias expectativas. Uma boa hora pra uma retrospectiva: olhar pra trás pra entender o que esperar do que virá
Eu gosto de começar o ano olhando pra trás, pra ver o que aconteceu e achar sugestões do que procurar adiante. Aqui, 7 pistas que a dança de 2021 deixa, pra gente pensar a dança que está por vir.
Presença não tem substituto
Não tem jeito, as artes da presença pedem presença. Passamos dois anos inventando, buscando, e aceitando substitutos, e muita gente encontrou soluções incríveis, bem feitas, e extremamente tocantes nesses formatos. Eles não têm nada de intrinsecamente menos bons, só de mais distantes. Poder voltar a frequentar o teatro me reafirmou o motivo de eu gostar tanto de dança — e é ver gente ali na minha frente. O computador não dá conta, a TV não dá conta, e eu, em tantas tentativas e propostas, ainda não me achei enquanto público de tela. Mas enquanto público pra cena, continuo pronto pra voltar pra plateia — e ansioso, porque estamos naquele limbo da virada do ano que tradicionalmente tem muito pouco, quase nada de programação.
Fadiga do online, necessidade do online
Eu não tenho dúvidas de que o online cansa. Física e mentalmente, ele parece que esgota de uma forma inusitada, incômoda, e desagradável. O meu sorriso pro convite de praticamente qualquer coisa já começou a desmanchar quando vejo a informação de ser por transmissão. Em oposição, to aceitando ver quase tudo em pessoa. Mas que a gente não se engane: o mundo não voltou a um antigo normal, e não tá tudo ok e sem problemas. Uma coisa que a pandemia deixou em evidência com seus recursos online foi justamente a possibilidade de maior abrangência. Eu vi nesses anos grupos que eu raramente tenho a oportunidade de ver em pessoa. Isso abre um mercado, isso abre um nicho, e isso abre um desejo. Agora que já sabemos que é possível, a gente quer e precisa espalhar dança por mais meios, pra mais lugares, e pra mais gente.
Gravar ou fazer pro vídeo
Com a tendência ao formato híbrido, e a trabalhos mistos (com versões distintas em video e em palco), eu comecei a precisar perguntar “essa é pra ver em video ou pessoalmente?” — e a diferença do resultado é enorme. Com todos os problemas e atravessamentos desse ano, a gente viu em video obra pensada pro palco, e, mais pro fim do ano, a gente viu no palco obra pensada pra vídeo. O maior trunfo sempre fica naquele lugar em que a realização encontra a proposta. Tem espaço pra tudo coexistir, mas o formato híbrido ou o misto não são só um escape, e precisam valer a pena pra quem assiste. “É o que dá pra fazer”, e “foi assim porque tinha que ser assim” arriscam ficar sempre com a recepção limitada ao “é o que tem”.
O Fomento não dá conta
Todos os programas de incentivo possíveis bateram recordes de inscrição. Porque todo mundo precisa de trabalho, e porque muita gente percebeu que não estava nem cogitando acessar certos caminhos. Aquilo que já existe, seja o Fomento ou qualquer outra iniciativa não dá conta da produção que temos por aqui. Nunca deu, mas a produção tem escalado, enquanto as verbas têm minguado. Pra dar algum encaminhamento pra questão, é preciso encontrar novas vias, novas formas, novas lógicas. Uma delas, um projeto de lei protocolado em dezembro, propõe a criação do Programa Movimenta Dança SP e Auxílio Viagem. Iniciativa de um conjunto de coletivos ligados a diversas formas de dança da cidade, o PL propõe atender mais agentes culturais, em suas diversas necessidades ligadas à dança. A movimentação que a classe precisa pra fazer uma proposta dessa se tornar de fato um programa é intensa, e demanda atenção e participação constantes. Fiquemos atentos, buscando as informações, e descobrindo de que forma podemos contribuir. Esse assunto volta pra 3ºsinal já já!
Tempos de crise, tempos de continuidade
Se a crise existe pra todo mundo, as estruturas que apoiam cada grupo mudam as possibilidades de continuidade. Há sempre uma expectativa de que as companhias públicas e estáveis mantenham seus trabalhos, mas essa não foi uma realidade o tempo todo. Grupos como a São Paulo Companhia de Dança mantiveram temporadas e produziram conteúdo específico pra meios digitais praticamente sem parar, e merecem o reconhecimento por esse esforço e seus resultados. Outros, como o Balé da Cidade, enfrentaram um conjunto de crise pandêmica com crise administrativa, que só no final de 2021 começou a dar sinais de novas esperanças. Mas a atenção precisa ser redobrada, porque várias das situações de crise administrativa ainda não estão completamente resolvidas: ainda temos incertezas sobre o processo que selecionou a atual OS Gestora da Fundação Theatro Municipal, e até sobre a ocupação da sede do Balé da Cidade. Discutir os equipamentos públicos é algo para todos: eles são nossos, são para nós, para a nossa cidade, para o nosso estado, e mantidos por nosso dinheiro. E é por isso que insisto em trazê-los pra coluna.
Formação continua fundamental
Eu nunca duvidei, mas a pandemia mostrou ângulos drásticos do papel da formação em artes. Ainda que muita gente tenha recorrido a cursos pontuais, os processos contínuos foram os que mais mostraram resultado. Com equipes coordenadas, articuladas, e pensamento de grupo, eles transformaram uma situação de pânico em uma situação de aprendizagem. O Núcleo Luz formou uma turma excelente, o Programa de Qualificação em Artes – Dança fez uma mostra de ótimos resultados, e encerramos o ano com o anúncio, há muito esperado, da criação da São Paulo Escola de Dança. Finalmente teremos uma escola pública estadual. O contrato de gestão foi assinado pela Associação Pró-Dança (a mesma que faz a gestão da SPCD), e as atividades começam já. Em breve, discuto as novidades.
Pensar, agradecer e reconhecer os que estão por aqui
No meio de tantas dificuldades cotidianas, tivemos que somar a perda de muitas vidas. Escrever textos de homenagem e obituários tem o gosto amargo das coisas que não tivemos tempo de fazer, das coisas que ainda seriam feitas. As homenagens são importantes, e a memória é fundamental. Mas que fique o recado sobre a importância de não deixar passar a hora. Celebremos também os nossos vivos. Aqueles que tanto fazem e às vezes têm pouco reconhecimento, ou oportunidade de registrarem seu trabalho, seu pensamento, seu esforço e dedicação. Não sejamos só herdeiros desses pensamentos, mas propagadores dessas presenças. Nesse ano que se inicia, a 3ºsinal também puxa pra si esse compromisso, propondo novos formatos pra falar mais de pessoas e projetos de agora. Vem ai.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, Professor Colaborador da ECA/USP, e editor do site Outra Dança.
*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete a opinião do Portal MUD.