O espírito do pavão na poesia da dança

Acervo pessoal do artista Guru Malay Kumar Sahu

Algumas artes belíssimas e de difícil execução, como a mímica, dedicam-se a imitar de forma tão verossímel quanto possível aquilo que vemos no mundo. Mesmo várias formas de interpretação teatral e a que vemos no cinema são comumente executadas com esse intento. A dança, no entanto, já traz consigo uma artificialidade, de modo geral, com movimentos que não costumam ser cotidianos ou, ainda que inspirados por eles, estão dentro de um contexto de expressividade artística cujo produto final não é o mero movimento funcional de um dia comum do sujeito na sociedade.

Na dança clássica indiana, a artificialidade é especialmente desejável. Nela, encontra-se o conceito de natya dharmi e lokadharmi. O primeiro refere-se à forma de se mover e se portar segundo códigos de movimentos estilizados, artificiais. O segundo, refere-se aos modos do mundo. O Natya Sastra, a escritura indiana mais antiga que trata da performance, dá preferência ao primeiro, sendo o segundo apenas uma pitada de tempero no prato da arte.

Para entendermos a arte indiana, é essencial entendermos também as correntes filosóficas, pensamentos e visões de mundo que a cercam e com as quais conversa. Um termo relevante e complexo do pensamento indiano é tattva. Como de costume quando se trata de termos sânscritos, ele tem vários significados. Pode ser traduzido como verdade, um princípio, aquilo que é, um aspecto de realidade que possibilita a experiência que temos. Um dos meus mestres costumava dizer que é a “ice” de alguma coisa. O que ele queria dizer com isso, é que se trata, por exemplo, da criancice de uma criança ou da chatice de algo chato. E isso ia ficando cada vez mais abstrato como dizer, por exemplo, que é a Mariice da Maria ou a azulíce do azul. Ou seja, é algo que faz com que caracteriza uma coisa de tal modo que, se não o tivesse, seria outra coisa ou seria irreconhecível. Mas isso não se refere apenas a algo externo e, sim, a uma energia que traz tal característica, tal essência.

A execução de um movimento do estilo natya dharmi para expressar o tattva de algo ficou claro para mim em uma apresentação que tive a honra de assistir. No dia 21 de junho, fui a uma comemoração do dia internacional da música, na cidade de Calcutá, na Índia, organizado por um respeitado produtor indiano, Amitava Bhattacharya. Ele tem feito um trabalho esplêndido na manutenção e disseminação da cultura regional da Bengala, especialmente dos músicos Baul. Mas, na Índia, música e dança são complementares e é difícil pensar em uma sem pensar na outra, principalmente quando falamos da arte tradicional. Assim sendo, a comemoração, além de vários artistas talentosos de diferentes estilos e origens, levou também ao público um dos estilos de dança Chhau, o Seraikela Chhau. A apresentação foi feita pelo grupo do guru Malay Kumar Sahuque, inclusive, já trouxe sua arte ao Brasil.

Todas as apresentações foram impactantes, com sua música tradicional tocada ao vivo, as máscaras de grande beleza, os movimentos ritmados e encantadores. Mas uma das danças me fez refletir sobre essa relação entre natya dharmi e tattva. Aquilo que é a essência de algo, nunca pode ser apenas o que se vê, o que está na superfície, o que é externo. Aquilo que algo ou alguém realmente é, se encontra especialmente na sua energia, na sua vida interna. E a dança do pavão me mostrou isso com muita clareza. Nas palavras do guru Malay Kumar Sahu, é uma dança poética.

O artista que executou essa dança, Yudhishthir Mahato, não tentava imitar os movimentos externos do pavão. Ele ia por um outro caminho, o caminho de dentro. O que eu senti, era que ele trazia à nossa frente, a energia do pavão ou, como diria meu mestre, a sua pavonice. Fiquei completamente fascinada. Talvez não seja uma experiência muito corriqueira para muitos, mas, acreditem, já vi vários pavões na minha vida. E me arrisco a dizer que, entre todos os pavões que já vi, aquele foi o mais verdadeiro. É como se a plenitude do que é ser um pavão tivesse se concentrado nele. Seus movimentos eram como que ampliados, assim como vemos nas verdades que nos trazem os sonhos. Ou, eu poderia dizer, é como se tivessem me dado uma droga que me permitisse ver e, mais do que isso, praticamente sentir, o que é ser um pavão, por dentro.

Essa é uma vivência que talvez só a arte possa nos proporcionar. Posso falar especificamente sobre as artes tradicionais da Índia, pelo menos, que têm essa capacidade de nos levar a uma dimensão simbólica, onírica, mais real do que o real, pois passa por dentro, se entrelaça por fora e nos leva além.

Vocês podem conferir um pouco do vídeo que fiz da dança do pavão nesse dia, clicando AQUI.

Kamalaksi Rupini

Kamalaksi Rupini

Ver Perfil

Dançarina, professora, pesquisadora, coreógrafa e atriz, dedicada às artes, especialmente à dança clássica indiana. Com licenciatura plena em Artes Cênicas pela UFMG, também completou lá seu Mestrado em Artes. Desde a infância e ao longo da vida estudou ballet clássico, dança contemporânea, contato-improvisação, dança de salão, dança do ventre, capoeira angola e dança-teatro. Se apresentou nos maiores e mais tradicionais festivais da Índia e em outras partes do mundo, recebendo títulos importantes, como o prestigiado Nritya Ratna (“a joia da dança”) e sendo aclamada pelo público, imprensa e crítica do país. Começando o estudo da dança indiana no ano 2000, em 2007 se estabeleceu na Índia aprendendo o Bharatanatyam com a renomada Guru B. Bhanumati e aprendeu o estilo Bharatanrityam com Sraddha Prabhu Kumar. Teve a oportunidade rara de aprender também com uma devadasi (dançarina-sacerdotisa), Kanagambhujam. Tem feito pesquisas e coreografias que colocam a dança indiana em diálogo com o resto do mundo e outros estilos de dança, mantendo o respeito pela tradição ao mesmo em tempo que traz inovação e criatividade.