A data do Dia da Dança é uma homenagem a um grande reformador dessa arte. Que lições suas de 1760 ainda têm algo a nos ensinar?
O Dia Internacional da Dança é celebrado em 29 de abril, data de nascimento de Jean-Georges Noverre (1727 – 1810), reconhecido por um importante papel como reformador da dança. Numa época em que o balé ainda começava a se separar da ópera, ele defendia princípios fundamentais de como criar uma arte coreográfica bem realizada, digna, e elevada ao nível das demais artes, dos artistas e do público da época.
Seu principal trabalho, publicado em 1760, as Cartas Sobre a Dança apresentam vários desses princípios, debatidos e justificados. Alguns dos problemas e soluções que Noverre levantava continuam fazendo parte do meio atual da dança: tem um tanto de coisa que não se resolve, e um tanto de coisa que simplesmente parece que virou característica dessa arte.
Da independência e correlação entre as artes, até a discussão da técnica, da formação, do trabalho dos professores, os pensamentos de Noverre foram reconsiderados em diversos momentos históricos, e oferecem jeitos de entender a dança de sua própria época, mas também o balé acadêmico, o neoclássico, os movimentos do balé moderno e da dança moderna, e diversas questões do contemporâneo ainda presentes entre nós.
Nesse dia da dança, recupero 4 lições vindas das Cartas, ainda carregadas de importância. Não simplesmente enquanto ensinamentos ou soluções, mas enquanto conversas que ainda precisamos continuar ter sobre a dança.
Da Carta 4:
“A indulgência com que o público aplaude simples esboços deveria, a meu ver, levar o artista a buscar a perfeição. Os elogios devem encorajar, não deslumbrar, a ponto de nos convencer de que tudo já está feito, de que atingimos o ponto máximo a que se pode chegar. A segurança da maior parte dos mestres de balé [coreógrafos], sua pouca preocupação em avançar, faz-me suspeitar de que imaginam já terem alcançado os limites da arte, acreditando não haver mais nada além daquilo que já sabem.”
A importância do trabalho contínuo, do desejo pela descoberta da arte, movia o balé antes de ele ser balé, e continua movendo a dança. Noverre discute o público, mas vai além da importância de agradá-lo: insiste no trabalho do especialista, do artista, que precisa almejar níveis além daquilo que simplesmente agrada. Ele defendia uma arte de experimento e de invenção, que ainda é muito do que se busca hoje.
Da Carta 2:
“Todo balé complicado e prolixo que não trace com nitidez e desenvoltura a ação que representa, cuja intriga só se adivinhe com um programa na mão; todo balé cujo enredo não se faça sentir, que não ofereça uma exposição, uma intriga e um desenlace, será somente, segundo minhas idéias, um simples divertimento de dança mais ou menos bem executado, que me afetará mediocremente, já que não tem caráter algum, desprovido de toda e qualquer expressão.”
Aqui, Noverre chama a atenção pra um fator fundamental: como se entende uma dança? Sua oposição à dependência da explicação textual faz eco à dança vide-bula, conceitual, e a tantas propostas ainda comuns, que podem até pensar bastante, mas têm dificuldade em se sentir sem a explicação. Para além das boas ideias e da boa execução, ele se preocupa (e a gente também), com boa dança.
Da Carta 11:
“Com certeza, se os bons mestres fossem mais comuns, os bons alunos não seriam tão raros. Mas os mestres capazes de ensinar, em geral, não lecionam, e os que ainda deveriam estar aprendendo com eles, estão tomados pelo furor de ensinar.”
O ensino de dança é uma questão em aberto da nossa área. A formação de professores, a garantia das capacidades e qualidades daqueles que ensinam, os problemas das formações feitas sem o devido cuidado… nada disso se superou e se resolveu — não por aqui, pelo menos. E continuam assombrando.
Da Carta 8:
“(…) possuímos pernas e uma execução que nossos predecessores não tinham, o que me parece uma razão a mais para que os músicos se determinassem a variar seus movimentos (…). A dança de hoje é nova, por isso é absolutamente necessário que que a música, por sua vez, o seja também.”
Falando especificamente da música, Noverre defendia sua modernização, o desenvolvimento de música mais elaborada para a dança, não apenas como acompanhamento da dança. Em outros trechos ele discute elementos semelhantes para todas as áreas artísticas que fazem o espetáculo, e sua mensagem continua tão viva agora quanto em 1760: a dança de hoje precisa de música de hoje, temas de hoje, bailarinos e coreógrafos de hoje, professores de hoje, técnica de hoje, cenários de hoje, figurinos de hoje, iluminação de hoje, textos de hoje, fotos de hoje, registros de hoje, pensamentos de hoje… enfim, corpos e mentes de hoje.
(Os textos de Noverre foram retirados da brilhante edição brasileira das Cartas, traduzidas e estudadas por Marianna Monteiro em Noverre: Cartas Sobre a Dança [EDUSP, 2006])
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, Professor Colaborador da ECA/USP, e editor do site Outra Dança.
*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.