Ansaldi nos arquivos, na memória

Crédito das Fotos: Isso ou Aquilo, 1975. Acervo Pessoal

Marilena Ansaldi deixa um legado histórico. Sua falta será sentida pelos próximos, pelos distantes, pela arte.

Essa semana, nos despedimos de Marilena Ansaldi, grande dama dos palcos — esse foi um dos jeitos como eu mais ouvi as pessoas se referindo a ela, e combina com a aura que ela sempre teve na minha cabeça: imensa, incontornável, arrebatadora.

Eu nunca tive o prazer de conversar com ela, e só a vi nos palcos poucas vezes. Me aproximei pelos arquivos. Depoimentos e entrevistas. Fotos de um tempo distante. Livros e histórias de uma influência decisiva, direcionadora.

Na minha memória, seu nome se fez sinônimo de atrevimento. Eu penso nos depoimentos de bailarinas do Corpo de Baile Municipal sobre o escândalo e a rejeição de parte do elenco à Medeia que Ansaldi monta, e que se torna um divisor de águas: a passagem, definitiva e incontornável, do balé clássico para a dança moderna na companhia.

Na minha memória, seu nome se fez sinônimo de incentivo e inovação. Penso na criação do Teatro de Dança Galpão, projeto incomparável dos anos 1970, ainda responsável por tanto da cara da dança contemporânea daqui.

Na minha memória, seu nome se fez sinônimo de persistência. Contra a resistência do pai, ela começa a dançar bem mais tarde que o habitual, passa pela escola do Bolshoi, e quando volta ao Brasil, faz parte daquele grupo insistente de artistas que tentou nos anos 1960 manter grupos estáveis de dança em São Paulo. Pra depois se reinventar numa forma própria de dança-teatro-depoimento.

O tamanho de sua aura é o tamanho de sua influência. É reflexo do que sentiam aqueles a sua volta. Em 1975, o crítico Acácio Vallim registrava que “sua presença é uma força magnética da qual é impossível se desligar”. Continuará sendo.

Na minha memória, seu nome se fez sinônimo de valorização. Por vezes, Marilena se afasta da cena, inconformada com a falta de reconhecimento de sua profissão e a dificuldade das condições para seu trabalho. Ouvir, sobre uma artista do seu tamanho, da falta de reconhecimento na área que a gente ama é terrível. Continua sendo.

Seu legado, espalhado por tantos lados, é o da inconformidade. Inconformada com não poder dançar, tornou-se uma grande bailarina. Inconformada com o balé não dar conta de suas propostas, criou novas formas de se expressar. Inconformada com a situação da dança experimental, criou o Galpão. A inconformidade move.

Não tive o prazer de conversar com Marilena Ansaldi, só na minha cabeça, só pelos arquivos. Na sua morte, as reverências ecoam o tanto que ela fez. Inconformados com sua partida, seguiremos. Extremamente agradecidos por tanto trabalho, tanta arte, tanta dedicação.


* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.

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Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.