A dança em São Paulo e seus caminhos no momento atual

Crédito das Fotos: BANANAS - Direção: Adriana Grechi - Divulgação - Núcleo Artérias

Por acompanhar desde 2002 até mais ou menos 2020 a produção de um grupo específico de artistas de dança em São Paulo, pude perceber um fenômeno ao qual gosto de chamar “expansão do campo da Dança”, emprestando o termo que Rosalind Krauss empregou para discutir tipos mais experimentais de escultura no campo das artes visuais.

Estes artistas que trabalharam nesta época, e alguns que continuam suas pesquisas até os dias de hoje, estrearam naqueles anos peças bastante complexas para o que o senso comum, talvez, imagine quando falamos em dança.

Eram coreógrafos como João Andreazzi, Maria Mommensohn, Sheila Ribeiro, Grupo Cena 11, Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira, KeyZetta & Cia, Vera Sala, Cláudia Müller, Núcleo Artérias, entre outros, muitos, que não conseguirei citar aqui, por questão de dinâmica do texto, os quais, por meio da continuidade de suas pesquisas artísticas produziram linguagens em Dança de modo totalmente próprio.

CODEX (Sheila Ribeiro) – em parceria com Alejandro Ahmed, Karlla Girotto e Tom Monteiro. Casa do Povo, 2017. Imagem – Rogério Ortiz

Havia, até o início da década passada o Programa Rumos investindo neste tipo de dança, financiado pelo Itaú Cultural; surgiu, com a luta de muitos trabalhadores da cultura, a Lei de Fomento à Dança da SMC/SP, e haviam editais da Funarte, do Governo do Estado de São Paulo. Havia também um espaço de divulgação e reflexão sobre dança no jornal O Estado de São Paulo, no qual a pesquisadora de dança Helena Katz fazia reverberar, com seus textos críticos, a programação de dança local, nacional, e, por vezes, internacional.

Três festivais independentes também contribuíam para a circulação e difusão dos trabalhos, o FID – Fórum Internacional de Dança, em Belo Horizonte/MG, dirigido pela artista e pesquisadora Adriana Banana, o Panorama, no Rio de Janeiro/RJ, com direção de Nayse López, e o Festival Contemporâneo de Dança de São Paulo, dirigido por Amaury Cacciacarro Filho e Adriana Grechi – no qual trabalhei como produtor, e onde pude ver obras muito abertas em termos de dramaturgias da Dança, apresentadas por artistas internacionais como Ivo Dimichev, Cristina Blanco, Taoufiq Izeddiou, e nacionais como Michele Moura, Thelma Bonavita e Thiago Granato, entre outros tão importantes quanto, naquele cenário de “expansão do campo da Dança” em termos de linguagem.

Me lembro de já ter escrito em algum texto que expandir implica em irromper, em passar a abrigar formas que antes não faziam parte do algo que se expande. Colocando de outra forma, peças que não seriam chamadas de Dança passaram a ser assim apresentadas, tornando o ambiente da Dança mais rico e complexo.

Também compunha um dos cenários mais favoráveis à experimentação e pesquisa em Dança a existência dos cursos livres em estúdios como a Sala Crisantempo e o Estúdio Nova Dança (que merece um texto à parte, tamanha importância desde os anos 1990), entre outros. E as universidades de Dança, como o curso de Comunicação das Artes do Corpo, na PUC/SP, que habilita artistas em dança, teatro e performance, mas que tem forte apelo crítico, tendo uma grade curricular com muitos componentes de teoria e crítica das artes cênicas. A Anhembi/Morumbi que formou diversos bailarinos nestas décadas, além do já tradicional curso de Dança da UNICAMP, produzindo pensamento crítico sobre Dança.

E este é apenas o recorte do sudeste, sabendo que havia pesquisas sendo desenvolvidas em outras regiões do país, como em Curitiba/PR, São Luís/MA Salvador/BA, entre Estados como Piauí, Rio Grande do Sul, e muitas mais localidades que podem ser mapeadas.

De 2013 pra cá, muita coisa mudou no país e no mundo, e isso se refletiu fortemente na produção de Dança em São Paulo. O FCD se extinguiu com a mudança de seus organizadores para Portugal, o Rumos não mais realizou mostras voltadas para este tipo de dança (que busca expandir a linguagem) e Helena Katz deixou sua coluna no Estadão. A impressão que fica, é a de que os espaços de encontro e troca entre os artistas, de produção de conhecimento compartilhado, os programas de formação de novos artistas e os eventos que formavam públicos se extinguiram. E quando não se tem espaço para o encontro, cria-se o que Christine Greiner alertava, já em 2013, que poderia acontecer nos processos de criação e produção de Dança: “o surgimento de um individualismo narcísico imune aos interesses coletivos”.

O SESC SP manteve-se aberto à produção destes artistas, mas a democratização (algo muito importante, em construção, quanto ao acesso aos recursos de produção, formação e difusão em Dança), passou a abrir-se para que outras pesquisas fossem apresentadas, algumas mais voltadas para a construção de regimes estéticos de protesto e luta contra a afirmação de apenas uma história e um modo de se fazer dança – que, é importante dizer, em partes, tratava-se de uma arte que por muito tempo apresentava-se a partir de uma tradição histórica iniciada na França. No entanto, havendo esta abertura, também política, o ideal seria que as políticas públicas se ampliassem, o que não ocorreu, de modo que os mesmos recursos passaram a ter de dar conta de mais pesquisas, de mais profissionais, criando uma lógica de inclusão e exclusão na cena.

Christine Greiner escrevia, no mesmo artigo de 2013, no O Globo, que “a mudança que marca(va) os últimos vinte anos é que essa irreverência e o nosso apetite eclético foram expostos de maneira radical e consciente. Pode-se dizer que a discussão mais potente que tem norteado a prática filosófica e o ativismo político em vários países do mundo, desde os anos 1960, tem sido hoje testada com muita vitalidade em diversas experiências da dança contemporânea no Brasil”.

Tendo passado por tantos acontecimentos políticos assustadores no país, na última década, as questões de linguagem, que haviam conquistado um grande avanço nas pesquisas, terminaram por perder espaço para uma dança combativa, de confronto com os regimes estéticos do conservadorismo nacional. Todavia, talvez não tenhamos percebido que é expandindo as linguagens da Dança, trabalhando a criação como pesquisa, mostrando resultados que até então não habitavam o pensamento popular sobre o que é uma peça de Dança, que vamos construindo politicamente esta resistência, modificando o comum para inventar um campo que ainda não existe, de diversidade.

Como cita Arthur Moreau, em seu texto “Louppe em Português, resenha da obra Poéticas da Dança Contemporânea”, publicado também em 2013, no Portal Idança.net, Delsarte, já no século XIX, “questionava de maneira radical o papel do corpo e do movimento em relação à função simbólica do sujeito.” Hoje, mais de um século depois, lidamos com sujeitos (no plural mesmo), com modos de existir no mundo, com o desejo de liberdade que nos rouba, positivamente, a segurança do que já conhecemos.

Uma das maiores preocupações de Greiner em 2013 era a de que, mesmo celebrando a existência dos editais públicos para a dança, surgisse um fenômeno segundo o qual poderiam emergir zonas de indistinção entre dança e mercadoria, por conta do tempo institucional dos projetos. Para que se possa cumprir um cronograma e iniciar um novo processo criativo, algo, em tese, menos planilhável, culminando numa certa domesticação da Dança, que a tornaria, em última análise, inofensiva – que não acionasse nenhum movimento.

Como desafio para o momento presente, acredito na diversidade, mas nos encontros entre os diversos. As lutas políticas por meio das organizações civis, de profissionais, e de demais interessados em cultura, pressionando o poder público para investir no setor devem ser dever de ofício. Mas além da política institucional, é na criação de contextos de troca, de experimentação processual, na contaminação, e em tudo que nos resguarde de uma produção totalmente ligada às lógicas institucionais que talvez possamos recuperar a vitalidade do fazer dança.

A menos que as instituições assumam seus papeis de protagonismo nesta criação de contextos, possibilitando aos artistas a troca estética, ética, política e conceitual. Uma arte que se faça do viver junto, oposto ao individualismo ensejado pelos modelos atuais de políticas públicas para a Dança, que Greiner já enxergava há mais de dez anos.

Rogério Salatini

Rogério Salatini

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Artista, produtor cultural e pesquisador de artes, Rogério Salatini foi diretor artístico e geral da Mostra Hiper_arte de Convergências (2016) e do projeto BDT Dance Television (2017/2018). Formou-se em dança na PUC/SP, é Mestre em poéticas visuais pela ECA/USP, e atualmente Doutorando em Artes Visuais na mesma instituição. É especialista em Gestão Cultural pelo Centro Universitário SENAC, e trabalhou em projetos premiados nas áreas de dança, artes visuais e programação cultural.