Foto: Marcello Ferreira
Por Giulia Badini
Os libaneses Bassam Abou Diab e Ali Houtapresentaram Sob a pele, Under the flesh na segunda-feira, 28 de setembro, na Arena do SESC Campinas, compondo a programação da 14ª Bienal SESC de Dança. Espetáculo que pôde também ser visto na terça-feira, 29 de setembro, no Departamento de Artes Corporais da Unicamp. Em cena estavam Bassam Abou Diab – bailarino e performer, com foco em dança contemporânea e folclórica, formado pela University of Lebanon -, o músico Ali Hout e o tradutor Nour Alshekh Koeder.
Under the flesh acontece a partir do diálogo que Bassam firma com seu espectador. Num tom de depoimento, o artista relata a relação e os limites estabelecidos entre a arte e o mundo real, provocando uma reflexão sobre em que medida se dá o entrelaçamento desses territórios. O libanês se comunica através da fala, proferida em árabe, e pelo movimento, demonstrado, explicado e ressignificado. Seu testemunho é costurado pela ironia e pela memória do artista, que recupera e dança o que viu e sentiu durante toda uma vida feita e desfeita diante dos horrores da guerra. Assim, seu mover entre o dabke, a dança contemporânea e o teatro, é marcado pela dor, pela violência, pelo luto e liberdade.
A bomba é o elemento central na construção da narrativa. No depoimento, Bassam conta, numa perspectiva histórica, a evolução das guerras no Líbano, sempre acompanhada da transformação das armas letais, sobretudo dos explosivos. E foi justamente a partir do encontro com essas armas e das possibilidades iminentes de destruição da vida e do material que Bassam desenvolveu suas técnicas corporais de sobrevivência.
O som do instrumento ao vivo entrecorta o silêncio e as falas, irrompe e o artista reage: “é a bomba!”. O libanês resiste entre bombas, bombas de estilhaço, bombas químicas e atômicas. Seu corpo vulnerável, mas em constante estado de atenção, coloca em prática as estratégias desenvolvidas para manter-se vivo. Entrega-se estrategicamente ao chão, deixa a força agir, faz movimentos circulares com as articulações e, por fim, evoca as tradições e o folclore, como na utilização do masbaha, uma espécie de corda que é um adereço utilizados por homens no dabke, e de uma espada.
Há assim um certo registro do conflito através do corpo e do movimento. A cena se transforma numa zona de guerra e a cada ato de sobrevivência Bassam celebra e diz, com humor, se tornar o super-homem árabe, instante em que o estado de apreensão que havia tomado a plateia é quebrado e transformado em risos desconcertados.
Under the flesh acontece também a partir da celebração, colocada como uma espécie de contradição diante das incertezas de se viver num país em guerra. Celebrar torna-se um ato de resistência, ao fim de cada conflito e na iminência incerta do futuro existe um retorno às origens, a dança assim é capaz de salvar de múltiplas maneiras. O corpo do libanês se transforma, sua dança se modifica, mantem-se enérgica e entre gritos proferidos, o corpo se move em trajetórias circulares pelo espaço, agacha, comemora, gesticula e grita.
O discurso de Bassam é bastante duro e preciso, as guerras são embates físicos e políticos e impactam, direta ou indiretamente, todos os corpos envolvidos. O libanês, entre momentos dançados, questiona o real envolvimento das nações em conflitos bélicos. Contesta a ajuda humanitária dos Estados Unidos e da União Europeia, que ao mesmo tempo em que encaminha para o território libanês brinquedos para as crianças que perderam seus pais, comidas enlatadas (e eventualmente estragadas), calçados da marca alemã Adidas, encaminha também bombas.
Under the flesh tem um final provocativo. Em meio ao que vimos e ouvimos sobre as estratégias de sobrevivência e resistência, o artista convida uma pessoa da plateia que queira testar e colocar emprática uma das estratégias de sobrevivência criadas. Duas pessoas se voluntariam e juntas de Bassam experimentam no corpo as técnicas número um e número dois. Os espectadores comemoram: “estão vivos!”. O treinamento parece descomplicado, mas é perturbadora sua finalidade no mundo real.
Num último ato, o libanês convida a todos para irem ao Líbano, onde as bombas são reais. É um convite que nos faz retornar para a realidade e refletir sobre a possibilidade de se almejar, como na arte, territórios libertos. Bassam apresenta o modo como encara sua vida permeada por conflitos, num corpo vulnerável, vestindo tênis e calça jeans, ele escolhe o movimento para experienciar e resistir à guerra.
Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães e da Profa. Dra. Cássia Navas Alves de Castro, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 14ª Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.

Giulia Bortoliero Coli Badini
Historiadora formada pela FFLCH-USP, mestranda no programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes-UNICAMP. Bailarina da Galpão 1 Cia de Dança, com direção de Erika Novachi. Integrante do Grupo de Pesquisa Historiografia da dança no Brasil: Conexões e Reverberações, conduzido pela Profa.Dra. Maria Claudia Alves Guimarães.
PPG Artes da Cena/UNICAMP