Com as dificuldades desse ano, várias tradições foram quebradas: vamos guardando presentes para um outro Natal.
Eu não sei se tem uma época mais propícia do que essa pra falar de tradições. Estar com a família e os amigos, as decorações por toda parte, a música temática — tudo colabora com a sensação de que as coisas estão no lugar. É ver o Quebra-Nozes em dezembro, é participar da espetáculo de encerramento do ano da escola. É fazer parte e estar junto.
Especialmente nesse ano tão atípico, a gente se vê confrontado com as dificuldades de manter tradições, e a necessidade de reinventar. É passar os aniversários em chamada de video, é achar outros jeitos de se comunicar e se fazer presente.
Sabe aquela superstição que acaba virando ritual? Três respiradas profundas quando a luz apaga. O que faz quando a cortina fecha. Onde a gente vai depois de uma estreia. Quem você abraça quando der meia noite…
Pois é. Esse ano, várias das minhas pequenas manias de todo dia, das minhas pequenas manias de teatro, também acabaram ficando na mesma caixa dos enfeites de Natal, que nem saíram pra decorar a casa. Faz parte. A gente acaba dando importância pra outras coisas.
Frente a uma onda de medo e incerteza, também uma onda de tentativas e propostas. Quebra-Nozes em formatos híbridos, plateia reduzida e mascarada, outras apostas de temporada. Tudo menor, tudo mais sóbrio. Mas com o canto do olho a gente vai buscando aquele brilho que faz parte desse momento.
É esquisito, a gente sabe. O perigo da pausa assusta. Se eu só pular esse ano da tradição, ela continua valendo? E é ai que tá a força dos grupos. Muito mais que os rituais, muito mais que as manias, tradição é aquilo que a gente compartilha com os outros.
Tradição é o efeito coletivo de fazer parte. E de estar junto a gente entende. Nem um solo de dança se faz sozinho. Mas tá na nossa tradição o grupo. O conjunto, o corpo, o espelho, os outros. E esse ano vai ficar faltando.
Vai faltar encontro, vai faltar abraço. Vai faltar a valsa dos flocos de neve — traço de um Natal que nunca foi daqui, mas que também já virou nosso: tradição se estende por continentes, atravessa mares, por mais de século.
De tudo aquilo que eu não pude assistir, de tudo aquilo que vocês não puderam dançar, esse ano fica aquela sensação de presentes que não pudemos abrir. Mas tudo bem. A gente já vai estendendo o olho curioso pra frente, porque semana que vem é outro ano, e ganhar presente atrasado também pode ser uma delícia. Feliz Natal!
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.