Entre o conceito e a realização, a dança demanda trabalho. Quando tudo chega, o resultado enche a boca. E quando falta?
Eu sempre me interessei pela distância e a continuidade entre proposta e execução, entre tema e realização, entre conceito e construção. Isso nunca foi uma oposição à arte conceitual ou à dança conceitual, mas uma reflexão de que o conceito pode ser um conteúdo muito movente, extremamente propulsor, e, ainda assim, é preciso que ele mova alguém e alguma coisa até outro alguém em algum lugar pra poder existir troca, comunhão, e a possibilidade de experiência estética.
Em outras palavras, conceito é bom, é um tanto fundamental, e move montanhas, mas conceito sozinho não dá jogo. Existe alguma distância entre a ideia e a obra, e parte do que eu acho tão admirável no trabalho dos artistas, é essa dupla função: pensar, idealizar, conceber, conceituar, mas também fazer.
Uma jurada de um reality show de culinária uma vez disse algo como “o conceito do prato é lindo, é ótimo. Mas a gente não come conceito”. Passam anos e eu continuo tentando achar uma forma boa pra expressar esse paralelo na dança. Me faltam palavras, mas acredito que a transposição está lá, de algum jeito.
Não posso negar que eu me apaixono por boas ideias. E tem um prazer especial em acompanhar uma obra que interessa tanto pela realização quanto pela proposta. Nos melhores casos, eu fico impactado com a imensa ilustração concreta de tudo que já se falou sobre o potencial da arte e dos artistas enquanto antenas da humanidade. Uma concepção próxima, mas menos embelezada, daquilo que já se chamou de “genialidade”: uma capacidade e formação ímpares em captar no ar o movimento do tempo, os fluxos dos pensamentos, as tendências das pessoas, transformar isso tudo em ideia e proposta, e depois encarnar de novo em forma de arte.
Nessas situações, o interesse nas obras é múltiplo, pega os sentidos, mas pega também a mente. Caleidoscopicamente, a dança se desdobra. Movimento, corpo, ideia, contexto, reflexão, possibilidades, propostas. O pensamento é colocado em ação, convocado à transformação, e é difícil sair ileso. Nem sempre feliz, nem sempre satisfeito, mas certamente modificado. Tem pouco mais que possa se esperar da arte.
Existe o deleite da retina, a satisfação da movimentação, a provocação da cena, o interesse estético. Também existe o gosto do estímulo intelectual e da provocação conceitual. Quando eles se encontram, tudo encaixa. Quando tem só o estético, é como comer um prato muito bom, mas sem fome. Quando tem só a ideia, é como comer um prato muito bem pensado, muito bem concebido, mas feito com ingredientes meia boca. E dança é o tipo de coisa pra deixar de boca cheia.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, Professor Colaborador da ECA/USP, e editor do site Outra Dança.
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