Registrado (e) na memória

A gente já teve muita dança, mas quanto dela tá registrado? Quanta dança sobrevive só na memória?


Foi preciso uma crise sanitária sem precedentes fechar teatros do mundo inteiro para algumas companhias começarem a pensar em formas de acesso (gratuito e popular) aos seus acervos de espetáculos.

Poucos grupos conseguem produzir material em vídeo, menos ainda têm a estrutura e o público para comercializar isso. São processos trabalhosos e caros, e que normalmente acabam deixados de lado.

Quando surgiu a demanda para conteúdos desse tipo, o problema ganhou destaque: ter conteúdo pronto para ser veiculado quer dizer inevitavelmente ter tido dinheiro e preocupação com documentação. E tão ai duas coisas que faltam pra nossa dança: dinheiro, e documentação.

O paralelo com hoje é inevitável: quando a questão é sobrevivência, existência, resistência, fica difícil ter o tempo e o investimento que são necessários pra fazer essa coisa, que parece um “a mais”. E a dança no Brasil frequentemente vive de sobrevivência.

Ela sobrevive, às vezes floresce, mas tem a memória curta e acaba se inventando sem parar. Isso porque é governada por duas obsessões opostas: uma com a estreia, e outra com aquilo que é antigo.


Entre o absolutamente novo, e aquilo que resistiu por muito tempo, sobra, basicamente, uma quase totalidade de produção descartada. Obras de praticamente ontem, resultados de  grandes investimentos pessoais, artísticos e financeiros, e que são completamente deixadas de lado. Simplesmente por não serem nem novas, nem velhas o bastante.

Nas efemérides, quando uma companhia conseguir sobreviver por 10, 25, 50 anos, conseguimos parar e olhar para o que foi feito. Durante aquele ano lembramos, e defendemos a importância de lembrar. E ai brincamos de fazer arqueologia com a memória recente, de resgatar o que não precisava ter ficado de lado por 10, 25, 50 anos.

Memória é negociação entre lembrança e esquecimento. O que deixa claro que não tem como lembrar tudo. Mas que também não deveria ser uma sugestão de apagamento.

No meio de tantas lutas e projetos, por apoios à dança, espaços para a dança, companhias estáveis, manutenção de núcleos, continuidade de trabalhos, ainda faltam recursos a projetos amplos de memória e documentação. Para registrar que a gente tem dança, mas que também teve dança, e que se importa com lembrar dela.


* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.

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Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.