A pessoa em cena faz toda a diferença. A dança não é uma entidade abstrata, a dança é aquela pessoa dançando.
Quem está em cena, quem está dançando, define toda a percepção possível que temos da dança. Uma coreografia não existe solta no espaço, entidade independente e espiritual. Ela existe ali, no concreto daqueles corpos que assistimos dançando. É por isso que eu tenho tanto apego à questão de variação de elenco de um trabalho.
O tempo passando traz um efeito interessante pras obras. Assistir a uma obra remontada com um novo elenco coloca em diálogo constante o reconhecimento e o estranhamento. É uma situação até peculiar: é a mesma coisa mas também é diferente. O movimento pode ser praticamente idêntico, mas algo muda quando muda o sujeito que dança.
As questões da primeira versão se transformam, se atualizam, se ajustam. Das mudanças mais brutais aos pequenos detalhes sutis de qualidade de movimento, alguma coisa vai ser diferente. E precisa ser. Senão o tempo não passou. Um novo momento, uma nova época, um novo elenco — e uma obra ganha um significado todo novo.
Às vezes essa troca é mais instantânea. Por diversas razões, companhias de elencos maiores podem variar elencos numa mesma temporada. Obras podem ser criadas com múltiplas possibilidades de elenco. E é ai que o pesquisador e o crítico em mim dão uma pirada.
É preciso entender as condições dessa multiplicação. Existe um elenco oficial e outro que aprendeu a obra pra caso de substituição? Ou essa obra realmente tem duas possibilidades de elenco? Estamos lidando com plano A e plano B, ou com múltiplas possibilidades simultâneas? Um dos elencos é o ideal? É pra eu ver com esses bailarinos, ou com aqueles bailarinos, ou é pra ver com todos?
A minha curiosidade costuma me abrir espaço pra questionar isso dos diretores e coreógrafos. Mas muitas vezes o resultado é multiplicador, e o ideal, pelo menos pra mim, insiste no assistir com todas as variações possíveis. Registrar todas as variações possíveis. Discutir todas as variações possíveis. Criticar todas as variações possíveis.
Nesse exercício, muitas vezes eu acabo descobrindo coisas novas sobre a obra. Separando as qualidades dos intérpretes das qualidades das propostas e coreografias. Faz diferença. Aquela passagem pode mudar a vida, mas às vezes ela só muda a vida com aquele bailarino que dançou naquele dia. Outro bailarino, outro dia, e puff, foi-se o momento.
É assustador o como isso pode escapar rápido do controle. É assustadora a sensação do “mas e se amanhã for um dia muito melhor pra assistir esse trabalho?”, seja pelo elenco, seja pelo público, seja pelo conjunto da mágica que só acontece ali, na dança feita em presença compartilhada.
Também é assustador saber que se assisto a uma apresentação só, perco os outros dias todos da temporada, e todas as variações do que pode acontecer ali. Assustador, mas também encantador. A mágica das artes da presença insiste na importância e o no valor do momento único de contato. Na importância e no valor daquelas pessoas que dançam, naquele momento, praquelas pessoas que assistem. Valorizemos.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, Professor Colaborador da ECA/USP, e editor do site Outra Dança.
*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete a opinião do Portal MUD.