O corpo lembra de dançar, de assistir, de estar lá, de fazer e de seguir o movimento
Na cabeça, um trecho de música às vezes vira movimento. O corpo lembra. Lembra de se mover, da sequência e da construção. Um passo depois do outro, um gesto depois do outro, fazendo dança. Assistindo, a gente se lembra também.
Tem obras que a gente sente com os braços tremendo, vibrando, quase como se sugerissem também um movimento da cena. Você se deixa levar e, quando repara, tá lá todo torto, com o pescoço seguindo a movimentação.
Sempre achei isso parecido com bailarinos marcando coreografia. Aquela coisa trabalhada no micro, só explorando o espaço, o percurso do corpo. Só as mãos fazendo a sequência de gestos simples e quase codificados, que de fora nem parecem dizer nada, mas quando você vê junto com a coreografia, entende.
Uma questão de pulso, de impulso. Um conjunto de pequenos rastros do movimento, que alavancam o corpo pra algo maior, mais desenvolvido. É inusitado. É improvável. Eu até desconfio. E, mesmo assim, a gente vê acontecer. Testemunha de que o corpo lembra, e às vezes só um empurrãozinho já recupera muita coisa.
Talvez seja algo da natureza do filtro da memória. Do mesmo jeito que um cheiro, uma imagem, um gosto te transportam pra outro lugar, outro tempo, outras pessoas, outras saudades.
É algo da experiência da vida, faz parte do dia a dia. É algo da experiência da dança, faz parte da comunicação da arte.
A dança pega os sistemas, as comunicações, as sensações, as estruturas que a gente vive o tempo todo, e cria com elas coisas completamente novas. Mesmas portas de entrada, resultados incrivelmente variados. Porque o corpo lembra. Cada corpo lembra. E lembra de muita coisa.
Tem coreografias que eu sinto nos joelhos, como se eles batendo nas cadeiras da fileira da frente ficasse gravado na lembrança daquela obra. Outras no pescoço, esticado pra assistir do canto da plateia, ou contornando as cabeças da frente. Dá pra lembrar de dança no pé molhado de um dia de chuva, e nas costas, com o frio inesperado do teatro gelado.
No meu corpo na plateia, as sensações vão se guardando misturadas. É aquela obra, e a movimentação dela. Mas é também aquele espaço, aquela luz da saída de emergência, o meu corpo naquela sala, naquele dia, naquela hora, com tudo o mais que tivesse acontecido, criando novas memórias com o que a gente vê em cena.
Em alguns momentos, a gente esquece tudo. Vem uma sensação tão forte, tão provocadora, que apaga por um instante o pé molhado, o pescoço torto, a luz no olho. Essa força grava no corpo a suspensão. E toda vez que eu volto pra uma dança que me cause isso, eu fico buscando essa memória. Porque o corpo lembra. E, às vezes, lembrar é um privilégio.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.
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