O atraso e a espera


‘Tem algumas pessoas chegando, já já a gente começa’ — é a frase que eu mais tenho medo de ouvir antes de uma apresentação. Atraso é um incômodo real…


A coisa que mais consegue me incomodar em uma apresentação não são falhas técnicas, problemas de concepção ou realização, dificuldades pra chegar até o espaço, falta de conforto, de um banheiro ou água… a coisa que mais consegue me incomodar é o atraso.

Em si problemático, e por natureza desrespeitoso, o atraso me perturba num tanto que eu já deixei de escrever sobre algumas obras pra evitar transformar crítica em uma carta de reclamação sobre o atraso. Mas neste espaço aqui, cabe.

Nenhum tipo de atraso é pior que o “tem algumas pessoas chegando, já já a gente começa”. Por que estamos esperando? Porque tem alguns amigos muito importantes que sabemos que vão chegar e não queremos começar antes deles… haja paciência pra quem já chegou…

Falhas acontecem, dificuldades e problemas no espaço fazem parte do ao vivo das artes da presença. Mas não é nenhum exagero esperar avisos e comunicação sobre essas situações, quando elas existem, e o fim da naturalização das outras situações.

Agora, neste momento de dança à distância, pensei: pelo menos não vou precisar me incomodar com os atrasos. Estava enganado.

Ao contrário, começamos já naturalizando um atraso padrão da “dificuldade de conexão”, que muita gente enfrenta direto, mas pouca gente pensa em tentar driblar um pouco antes da hora marcada. Tudo bem, dá pra superar.

Mas mantivemos o descaso do “tem amigos importantes chegando, esperem por favor”, e ainda criamos uma categoria toda nova de perda de tempo: o tempo que esperamos com as pessoas à toa no Zoom, como se ele fosse uma eterna sala de espera, antes da coisa começar de fato.

E quando a espera termina, vem nossa grande recompensa, que às vezes é só um link, pra assistir a uma gravação, em outra plataforma…

Nada contra gravações. Aliás, acho uma saída muito boa pra manter a qualidade da transmissão e a praticidade do acesso, nesse momento. E frequentemente preferencial ao ver ao vivo com a imagem travando… Mas dai a entender a necessidade de passar 20 minutos numa sala de espera pra receber um link que poderia ter sido enviado por email, tem um grande caminho.

Somos apegados a uma ideia de presença, às vezes quase como um fetiche. E eu vou torcendo pra que isso seja só uma fase de confusão, e não uma dedicada proposta de oferecer gato por lebre. Até lá, um pedido insistente, pra plateias e produtores e artistas, independente de formato, espaço ou plataforma: cheguem na hora, comecem na hora.

* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.

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Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.