Novos rituais

Assistir à dança é um ritual, que tem se misturado com o cotidiano sobreposto. Como resgatar o rito, pra aproveitar melhor a dança na tela?

Pra mim, a maior dificuldade com ver dança em tela sempre foi uma falta de ritual. Só a possibilidade do pause já muda todo um fluxo de acompanhar uma obra que exige a atenção contínua, e quase que ilimitada: uma questão de entrega.

Ao vivo, tudo que a gente deixa escapar é irreversível. Na gravação, você dá um clique duplo, volta uns 10 segundos, e ganha mais uma chance pra ver. Pode ter vantagem, em diversos aspectos, mas a gente também perde o ritual do momento.

A experiência fica mais próxima do cotidiano, do todo dia a mesma coisa. E por isso, menos sensibilizante. O ritual é longo, vem desde a organização e a decisão de assistir algo, passa pelo se arrumar, se encaminhar, chegar até um espaço, se ambientar, procurar seu lugar na plateia, observar a construção do espaço, e o público em volta que vai tomando a sala. Ai vem aquela respirada funda quando o terceiro sinal toca, e a gente se entrega pro momento de assistir.

Assistir em casa sempre foi diferente. Mas num momento em que a casa se mistura com escritório, com sala de aula, com academia, com mesa de bar, e tudo que tinha espaços e momentos específicos vai se fundindo num grande e indefinido caldo, fica uma outra confusão.

O teatro pausa o mundo. A sala de espetáculo isola um tanto da vida lá fora, acolhe, aconchega e coloca a gente pronto para a contemplação. Em casa, com o celular ou o controle na mão, e com as notificações se sobrepondo às telas, é tudo um tanto mais bagunçado.

Pra além disso tem as naturezas específicas do vídeo. A bidimensionalidade, que interfere um bocado na percepção do corpo. E a câmera: um outro olho, que já vem com uma direção da sua atenção. Quantas vezes eu não assisti um registro em vídeo, pra olhar de repente a câmera correndo pra um lado, e me cortando a possibilidade de ver o que acontecia ao mesmo tempo em outro canto do palco… Quantas vezes cenas com mais de um foco não se traduzem, no vídeo, como um solo isolado…

A dinâmica da atenção focada e ampliada também faz parte do ritual de assistir dança. Do perceber, pelo menos um tanto, ao mesmo tempo, o todo e a parte. Isso vem com o pacote. É complicado e também desgastante, mas assim são os rituais.

A gente repete rituais constantemente. Seja pra manter uma unidade, seja pra abrir um tempo e espaço específico para a quebra da unidade, pra romper com o cotidiano.

Pra esse momento, com o ritual da sala de espetáculo em suspensão indeterminada, fica um desafio, que é mais uma lição de casa — ênfase no “de casa”: buscar os nossos ritos pessoais, e as formas de adaptar, insistir e repetir essas cerimônias, pra poder aproveitar ao máximo a dança nesse momento.

* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.

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Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.