Parece — mas só parece e essa ideia já é antiquada — que a arte depende de novidade pra ser interessante. Todo mundo adora ouvir um “pela primeira vez”, um “nunca antes visto”, um “completamente inovador”. Mas sejamos honestos: só se inventa a roda uma vez.
Apesar disso, entre o efeito de marketing e a crença romântica, sempre tem um tanto de produção que se anuncia e que é vendida como “novidade”. Nós temos uma obsessão cultural com o inédito, o original, a estreia — e a dança não escapa disso.
Essa obsessão é perigosa, porque ela atende uma lógica de produto, uma lógica de mercado: lançamento, novo modelo, versão otimizada, 2.0. E os caminhos da cultura são outros.
Por questão de hábito, ou por comparação com formas industriais, a gente acaba valorizando tanto a ideia do novo, que às vezes nos contentamos com (e até incentivamos) novas embalagens para exatamente as mesmas coisas, e vemos a mesma roda de sempre, com uma apresentação que de “nova” só tem a propaganda.
É um caminho tortuoso, que cobra ao mesmo tempo a novidade e a pesquisa continuada. Nenhuma dessas coisas acontece da noite pro dia, mas mesmo assim fica no ar um tom horrível de expectativa de que, pelo menos uma vez por ano, o artista se reinvente, num processo ao mesmo tempo consequente de sua carreira e completamente inesperado.
O esquema é cruel e reduz a produção artística a um sistema de fábrica. Mas como atuar em algum outro sentido?
Primeiro, incentivando as não-estreias. O tempo faz bem pra dança, e um espetáculo amadurecido tem muito a oferecer pro público. Então assista ao que você ainda não viu, reveja o que já assistiu há algum tempo. E aproveite novas temporadas pra fazer mais indicações. As obras também se atualizam pelas nossas reflexões.
Segundo, incentivando a memória. Se importe com história: gente informada corre menos risco de cair na pegadinha do “nunca antes visto”, e tem ainda menos necessidade de inventar pseudo-novidades. Não somos tão inéditos assim, mas o passado tem muito a oferecer.
Terceiro, ajude a desconstruir o mito da novidade constante. Continuidade se faz com um bom tanto de insistência e umas pitadas de inovação. Pesquisa séria inclui repetição, replicação, e verificação. Senão é invencionismo e falta de conhecimento.
A roda já foi inventada e ela funciona. Não espere que ela seja superada todos os dias, todos os anos, todas as décadas. O mundo tá cheio de coisas que não são completamente novas, mas são completamente ótimas. A dança também.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.
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