Foto: Juliana Hilal
Por Giulia Badini
O espetáculo Serenatas foi apresentado na sexta-feira, dia 3 de outubro, na Arena do SESC Campinas, compondo a programação da 14ª Bienal SESC de Dança. Com criação e direção de Soraya Portela e assistência de direção de Layane Holanda, artistas, educadoras e pesquisadoras, desenvolvem trabalhos entre as áreas de dança, teatro, performance e audiovisual, juntas dirigem o TRICA – Festival de Arte com Criança -, e são fundadoras do Instituto Punaré. Serenatas é fruto de uma residência artística realizada na cidade de Campinas-SP. Participaram dessa prática colaborativa mulheres vindas de Parnaíba-PI – integrantes do projeto Serenatas, dirigido por Soraya Portela e que acontece nessa cidade desde 2021 – e mulheres da cidade de Campinas-SP.
O espetáculo existe a partir do entrelaçamento de histórias, que se alternam a todo momento, de memórias e da possibilidade de dançar como um ato de se reinventar. As mulheres chegam e vagarosamente ocupam a cena, como num ato de solidariedade e união, se aproximam umas das outras até formarem, ao centro, um coletivo. Os corpos assumem um balanço que se constrói e se amplia aos poucos pelo contato estabelecido entre elas, é um pulsar que permanece e as acompanha por todo o tempo que estão em cena. O coletivo se reorganiza numa única fila conectada pelos braços e abraços. Não há música, elas dançam e permanecem no silêncio.
Serenatas brinca então com a imagem das particularidades e potencialidades do indivíduo, ao mesmo tempo em que explora a ideia de que há sempre algo que nos une enquanto coletivo. Nesse jogo, instaura-se uma relação em que ora alguém assume o comando, ditando o fluxo do movimento, ora cada uma parece ser seu próprio norte.
A materialidade em cena faz parte dessa brincadeira, assim como as mulheres, ela se molda e se transforma. Os tecidos, incialmente postos como cenário, se tornam reais a partir do contato com as artistas, são toalhas, cangas, colchas e lenços que são manuseados e ressignificados. Há uma beleza incontestável nas mãos e na pele desenhadas pelo tempo que mobilizam e conduzem os tecidos com zelo e determinação.
Os tecidos ganham vida nesse convite à fabulação. O manuseio dos materiais abre um mundo de possibilidades, através das quais corpo e matéria parecem se tornam uma única entidade. Do contato com os tecidos – que são casulo, água, vento e morada -, as participantes se apropriam de seus corpos, suas histórias e memórias. O contato gera imagens e ações, elas se movem como se estivessem se despindo e se despedindo de algo, mergulham em si mesmas e celebram o momento presente sambando.
Serenatas é curiosamente costurado por momentos de silêncio, que abre o caminho para a celebração da natureza e para o festejo. Assim como as mulheres, o espectador transita entre a introspecção nos casulos e a celebração do momento presente. É costurado também pela narrativa pautada no corpo e o direito de habitá-lo. Está posta assim uma reflexão sobre a vida, numa realidade em que mulheres são podadas e reduzidas a determinados papeis sociais. São mães, avós, esposas, destituídas de direitos, de seus sonhos e de sua sexualidade, seus corpos são objetificados e, quando velhos, ignorados. Dançar torna-se uma possibilidade de resistir e questionar as maneiras como são validadas pela sociedade.
Não há virtuosismo, a dança simplesmente acontece num profundo diálogo entre o íntimo que se torna visível. Nesse sentido, o espectador distancia-se da contemplação de corpos com habilidades técnicas apuradas, mas aproxima-se do humano, do suor, das fisionomias marcadas pela passagem do tempo e dos pés descalços. O que está posto em cena é tão genuíno de maneira que parece não precisar que alguém de fora testemunhe o processo de transformação e afirmação dessas mulheres, elas se apropriam de si mesmas em cena e na vida.
Dançar, para essas mulheres, é uma escolha, elas dançam por si e para si. Assim, ao se moverem nessas serenatas, os corpos se tornam como manifestos, através dos quais reivindicam sua sabedoria e o direito de existir e de criar a partir de seus próprios repertórios. O espetáculo torna-se assim um convite para que dancemos, parafraseando Soraya Portela, “como se houvesse o amanhã”.
Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães e da Profa. Dra. Cássia Navas Alves de Castro, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 14ª Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.

Giulia Bortoliero Coli Badini
Historiadora formada pela FFLCH-USP, mestranda no programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes-UNICAMP. Bailarina da Galpão 1 Cia de Dança, com direção de Erika Novachi. Integrante do Grupo de Pesquisa Historiografia da dança no Brasil: Conexões e Reverberações, conduzido pela Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães.
PPG Artes da Cena/UNICAMP