Liturgia da dança

Crédito: Léo Pinheiro @c41estudio / @cultsppro

Por Flávia Fontes Oliveira

O bailarino e coreógrafo Rafael Carrion, orientador,  desta décima edição do Programa Qualificação em Artes, da Cia Avant-Scène (Sorocaba), dirigida por Laura Moeckel disse, durante o seminário com todos os participantes da Mostra de Dança PQA CULTSP PRO, que uma das possibilidades desses encontros é “arriscar”, estar à beira de um abismo diante da criação. Por outro lado, a diretora e coreógrafa do grupo Laura Moeckel, em diversos momentos de troca, apontava para sua inquietação no processo de recriar Uno, trabalho apresentado na primeira noite da Mostra, no dia 28 de novembro, na Casa de Cultura Cine Santana.

Essa tensão e disposição dos dois lados para pensar um trabalho para dança resultou em uma peça forte com aprofundamento no tema abordado e domínio cênico das formações. Laura, com uma assinatura coreográfica própria, neste trabalho constrói uma liturgia da dança, dividindo o espaço de composição com os intérpretes-criadores Gabriel Ambrogi, Jonathan Souza e Camila Rodrigues, e, em cerca de 40 minutos.

São doze bailarinos em cena que em raros momentos deixam o palco e esse volume dos corpos ajuda a moldar as ideias presentes da coreografia: os conflitos sociais entre o individual e o coletivo;  os conflitos pessoais em que pensamentos, culpas e julgamentos se agitam sob uma pele social. Essa dualidade cria um crescente de tensões e soluções como um ritual que culmina com a trilha com um trecho do sermão do 4º domingo da Ascensão, do Padre António Vieira (1609-1697), repetido diversas vezes, com ênfase em algumas palavras.

Com a presença dum elenco tão grande em cena, a coreografia tem dinâmicas de composições com conjuntos sendo criados e dissolvidos, em volumes, em movimentações unificadas, lembrando referências como o uso de conjuntos da brasileira Roseli Rodrigues (1955-2010) ou o espanhol Nacho Duato.

Crédito: Léo Pinheiro @c41estudio

Há fluidez, um deslizar nas sequências, mas a dinâmica que resulta não é leve, porque o tema é de disputa. Uma cena após a outra mostram a inquietação crescente desse embate proposto. Nessa disputa social e íntima, uma parte da coreografia pode simbolizar o embate, quando duas bailarinas, protegidas pelo grupo dançam uma de frente para outra, em movimentos nem sempre convencionais mas virtuosos, por exemplo,  uma bailarina que coloca os pés na cabeça e se desloca sentada.  Há também o solo feminino de controlada força, também virtuoso e com uma característica muito técnica, dando-se a impressão de que ela pode cair porque apresenta muitos movimentos com as costas arqueadas para trás.

Crédito: Léo Pinheiro @c41estudio

As cenas revelam o jogo entre a dualidade do homem, com uma companhia vigorosa, unificada, mas com bailarinos diversos. Esta formação gera sequências, que vão sendo construídas uma dissolvendo na outra: o solo do início com todos os outros bailarinos atrás; a imagem logo em seguida que lembra um quadro barroco, com um realismo dramático, em contratantes entre luz e sombra; ou a sequência em que as bailarinas levantam os braços como um Cristo crucificado.

Um trabalho preciso, com elenco refinado e finamente ligado entre si.  Destaque para a bela e frutífera parceria entre orientador e orientando promovido Programa Qualificação em Dança. Uno é um trabalho que poderia (deveria) ter uma temporada e circulação para um público maior.

Crédito: Léo Pinheiro @c41estudio

 

Crédito: Ronny Santos

Flávia Fontes Oliveira. Jornalista e roteirista. É autora e roteirista do projeto Tempo de Dança (Origina Conteúdo, em cartaz no canal Arte1). Também colabora com o jornal Valor com matérias sobre dança. Trabalhou na Gazeta Mercantil, Revista Época (semanal), foi redatora-chefe na Editora Trip e coordenadora das áreas de Comunicação, Educativo e Memória na São Paulo Companhia de Dança. Já fez matérias sobre dança em diversos veículos como as revistas Bravo!, Fapesp, CartaCapital, TAM, Voe Gol, entre outras. É autora de artigos como Texturas da Memória (in: Sala de Ensaio, Imprensa Oficial| SPCD, 2010. Co-organizadora do livro Na dança (Imprensa Oficial, 2005). É mestre em comunicação pela PUC/SP, com dissertação sobre a dança em São Paulo. Como roteirista, em ficção, fez parte da equipe de roteiro da série Chuva Negra, de Rafael Primot. Participou da equipe de roteiro do programa Me deixa dançar (Moonshot Pictures – GNT); da temporada 2 e 3 do programa Menos é Demais (Discovery Home & Health).

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Como parte das estratégias da Mostra de Dança PQA CULTSP PRO (28 a 30 de novembro de 2025/ São José dos Campos/Casa de Cultura Cine Santana), esta resenha foi escrita para ampliar- mediante um profissional olhar crítico sobre as obras nela apresentadas – as ações do PQD, programa de formação profissional, inovação e sustentabilidade, criado pela Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, gerido pelo Instituto de Desenvolvimento e Gestão – idg. O PQD tem Coordenação de Cássia Navas, Supervisão Artística de Samuel Kavalerski e Monitoria de Bia Fonseca. O CULTSP PRO tem Sérgio de Azevedo como Gerente Geral de Formação e Raquel Verdenacci como Diretora.

Esta publicação é uma parceria entre o CULTSP PRO e o Portal MUD, sendo as visões nelas expressas exclusivas de sua autora.

Programa de Qualificação em Dança

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Concebido para aproximar artistas, mediante a orientação de grupos, companhias e coletivos de todas as formas da dança no estado, o PROGRAMA DE QUALIFICAÇÃO EM DANÇA alarga seus contornos ao investir diretamente em territórios estruturados e/ou em estruturação da arte, cultura, indústria e economia criativas. Para isto, ambém estabelece especiais circuitos de circulação e validação da dança atual, também em mostras regionais e estaduais.