Existe dança na quarentena


A dança na quarentena é um laboratório de possibilidades do agora. E não poderia ser diferente.

Eu olho em volta e continuo surpreso: existe dança na quarentena. Não é um elogio, nem uma defesa de um “normal”, seja ele velho, novo, ou o de sempre. Mas é fato.

Encontramos uma pandemia, e entramos num estado indeterminado (e com cara de perpétuo) entre isolamento, distanciamento, quarentena, lockdown. A vida mudou, mas não parou de existir. Ela foi forçada a uma posição incômoda, cruel e inesperada, e, como sempre, achou seus jeitos de continuar. Da mesma forma, a dança.

Ainda não encontrei ninguém que queira viver de telepresença, assim como não vi ninguém querendo viver de relacionamento à distância. Mas, como sempre, dada a situação, a gente faz o que pode.

A dança também.

Daqui alguns anos, vamos ouvir a pergunta curiosa: “tinha dança na quarentena?”. É surpreendente, e, ao mesmo, lógico. A dança na quarentena é como a dança tem sido: é o que dá pra fazer. E é bem diferente pra uns e pra outros esse “o que dá pra fazer”.

Os enfrentamentos sempre foram cotidianos, entre os muitos jeitos de fazer dança acontecer. Nada disso é novo. Desigualdade é coisa enraizada, e ainda mais acentuada na crise.

As formas artísticas de resposta são específicas, são contextuais. Se eles continuam criando, é porque criam, também, formas de fazer na quarentena. Dentro do “o que dá pra fazer” de cada um.

É quase tudo experimento, e muito ainda vai chegar apressado ao público, antes de ter resultados, preso ao laboratório: porque faz parte da ordem do momento a resposta imediata. E tudo bem. O estado é imediato pra arte e pra todo mundo.

Um deslize e a pergunta escorrega: A dança da quarentena é inovadora? É criativa? É inventiva? É original? É boa? Bom… como sempre foi, tem de tudo. É natural de todas as formas de arte. É natural de todos os momentos.

Tem de tudo, mas o mais interessante é que tem. O mundo deu todos os motivos pra dança não acontecer. Todas as desculpas, todas as justificativas. Mas a coisa continuou. 

E quando perguntarem desse momento, a gente vai poder responder que sim, existe dança na quarentena.


* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.

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Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.