DARKMATTER: uma fenda no espaço-tempo

Foto: Bas de Brouwer

Por Paula Madueño Zonzini

A partir do interesse por dissonâncias, degradações, distorções e construções incomuns de novas realidades corporais, Cherish Menzo –coreógrafa radicada em Bruxelas e Amsterdã, uma, entre outras líderes do GRIP, formada em 2013 na Hogeschool voor de Kunsten, em Amsterdã– e  Camilo Mejía Cortés –artista colombiano interessado em performance e improvisação, associado à Beursschouwburg– criam a obra Darkmatter, apresentada na 14ª edição da Bienal Sesc de Dança/Temporada França-Brasil nos dias 30/09 e 01/10/25,  no Sesc Campinas–  e 04/10 e 05/10, no Sesc Consolação, em São Paulo.

Orbitando sobre tema complexo, que abarca o intangível –aquilo que não pode ser observado diretamente, mas sim, pelos efeitos que causa– trazem o conceito do campo astronômico: matéria escura, a fim de estabelecer relações com a densidade das narrativas fixas e estereotipadas sobre os corpos, sobretudo, os corpos negros.

Desafiando o tempo através das propagações dos gestos e sons no espaço, a dupla de artistas constrói uma narrativa dramatúrgica capaz de traduzir o corpo como próprio vaso alquímico, apto a sustentar elementos primordiais e promover transformações. Apoiados no pós-humanismo negro, no afrofuturismo, bem como na técnica de remixagem chopped and screwed –picada e parafusada– constroem um outro universo para o cenário atual, no qual lentidão, repetição, dilatação e estranhamento, se fazem presentes na desconstrução de narrativas pré-definidas.

Cena aberta, público entrando, atmosfera enigmática sob uma cama sonora de vibrações graves. Dois corpos numa luz fria, aparecem do lado esquerdo do palco. No fundo, palavras são projetadas em uma grande tela, expressando o momento atual da crise global, crimes contra a humanidade, a violência dos genocídios, e questionando os espaços generosos de escuta e conhecimento (des)compartilhado, no passado, presente e futuro.

Vemos um corpo deitado, e um outro ajoelhado diante do primeiro, ambos com máscaras pretas futuristas e de capuz. O figurino é todo preto e urbano e em suas máscaras, incide uma luz interna. A cena carrega a beleza do “estar com”; o segundo, tinge de preto o ventre do primeiro corpo, deitado. Ambos iniciam gestos sutis e levantam-se, agora contra uma bela luz azul, num cenário de faixas de borracha translúcidas –com partes tingidas  com a mesma tinta preta– penduradas desde cima até o chão do palco.

Uma serenata, cantada em voz feminina, aparece como camada sonora, e os dois corpos, como sombras moventes em transe, repetem palavras num rap estilizado. Seguem aprisionados por bastante tempo nas mesmas palavras, em clima futurista apocalíptico. Seus dentes são prateados, de metal, e seus  movimentos são lentos e fluidos.

No fundo do palco projeta-se uma bela imagem –a princípio indetectável– de um organismo vivo e escuro; num segundo momento podemos identificar que trata-se de uma língua tingida desta matéria escura, em movimento, num grande zoom. Toda a obra é marcada por aproximações e distâncias de signos e referências, que vão perdendo e ganhando novos significados –desde a linguagem sonora, cenográfica, dos figurinos ou mesmo dos gestuais. O figurino também vai transformando-se durante o trabalho. A tinta-matéria começa a ganhar densidade e cobre partes do corpo dos artistas, como uma espécie de  látex.

A tinta é matéria escura, maleável, piche, látex, partícula universal, sangue negro, petróleo, a bile negra do baço do planeta; ela é a própria hipótese densificada. Eles cospem a tinta no chão branco, pintam o mesmo chão derramando-a de baldes, deitam-se sobre ela, até tudo fazer parte de uma mesma mistura caótica. As faixas de borracha translúcidas penduradas no fundo do cenário vão sendo baixadas uma a uma. Vemos rastros de seres moventes, caminhos de organismos vivos que a certo ponto da peça, invadem a platéia. O tempo incomum, as distorções e repetições, proporcionam um estado hipnótico incômodo no público.

Luzes estroboscópicas, fumaça, vozes cibernéticas e movimentos decupados –da linguagem do hip hop–  criam um novo universo, profundo e fundamental. Nus, com botas de látex pretas até os joelhos, com saltos de plataforma, os corpos potentes e expressivos, caminham numa corporeidade antigravitacional. Em resistência, vão ao chão e mesclados, corpos nus pintados, botas brilhantes, preto-latex, viram um outro ser, corpocriatura. Imagens vem e vão,  e na possibilidade de criar, a leveza aparece, eles brincam e relacionam-se.

A distorção é um grande disparador das experimentações dos artistas, que mostram-se íntimos e apropriados da parceria artística. Juntos, conseguem questionar, experimentar e expressar, em diversas linguagens narrativas de composição, uma nova possibilidade de existência frente ao excesso de tristeza e desgaste gerados pelas atrocidades e injustiças do mundo atual. Criar, mover e não paralisar! Sob ritmo denso e profundo, a obra evidencia o desconforto diante à desconstrução dos paradigmas vigentes e modelos de percepção preconcebidos, vislumbrando novas relações perceptivas de referência e apresenta a arte como campo de possibilidade imagética, capaz de criar espaço para aqueles que não tiveram, e ainda não tem, passagem neste mundo.

 

Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães e da Profa. Dra. Cássia Navas Alves de Castro, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 14ª Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.

 

Paula Zonzini

Mestranda em Artes da Cena pela UNICAMP. É Bailarina formada pela Royal Academy of Dancing of London. Integrou a Cia. Cisne Negro e Balé da Cidade de São Paulo, na qual foi bailarina premiada (APCA/97). Foi Assistente de Direção, Intérprete Criadora e Preparadora de Elenco do Projeto Mov_oLA. Contemplada pelo Prêmio Denilto Gomes (2015). Integra o grupo de Pesquisa GEPETO- coordenado pela professora-doutora Cássia Navas Alves de Castro. Psicóloga, Especialista em Técnicas Corporais (Sedes Sapientiae). Psicoterapeuta junguiana com ênfase em Educação Somática, Movimento e Calatonia.

PPG Artes da Cena/UNICAMP

PPG Artes da Cena/UNICAMP

Ver Perfil

O Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena tem como objetivo a formação de pessoal qualificado para atuar na pesquisa e no ensino de campos pertinentes às artes da cena, quais sejam, o teatro, a dança, a performance, em interlocução ou não com outras artes presenciais, promovendo difusão de conhecimento mediante a colaboração de seus pesquisadores junto a periódicos especializados, eventos científicos da área e, no que concerne à extensão e socialização do conhecimento, apresentação pública dos espetáculos e performances produzidos como fruto das pesquisas.