Com hora marcada

Sem a presença, as artes cênicas são menos vivas?

Eu passo por isso quase toda semana. Me organizo pra assistir a alguma coisa, marco na agenda, no calendário, coloco aviso no celular. Sento no computador alguns minutos antes e é exatamente nesses minutos, esperando a apresentação começar, que eu me distraio com alguma outra coisa, com o risco eterno de perder a hora.

É uma dessas dificuldades de misturar o estar na plateia com o estar no escritório, estar trabalhando, estar prestando atenção nos emails, na casa, no celular, na roupa no varal, na chuva batendo na janela, nos carros passando na rua…

Quarentenados, a gente sobrepõe os espaços e os momentos da vida, e é difícil criar a atenção e a importância para cada coisa. Por que, quando tudo se mistura, fica mais difícil manter a agenda?

A gente sempre teve hora certa pra ver dança. O processo antigo — parar as atividades, se arrumar, se deslocar, esperar o início ali no ambiente — foi trocado por processos novos. Mas se você se atrasa, você perde um pouco da obra. É normal. É uma característica fundamental das artes da cena, as artes vivas: elas acontecem ali, naquele tempo, naquele espaço.

Perdemos o espaço: estamos em casa. Perdemos um tanto do acontecimento: estamos frequentemente vendo coisas gravadas. O que fazer, então, pra não transformar o momento em perda de tempo?

Dia desses eu me distraí limpando o banheiro e perdi o começo de uma apresentação gravada, mas transmitida ao vivo. Não dava pra voltar e ver o começo. Bateu uma indignação: de onde vem essa ideia de ter hora marcada pra ver coisa gravada? Dois segundos depois, eu percebo que não tem nada de novidade na proposta. TV e cinema, por exemplo, mostram coisas gravadas com hora marcada desde sempre. Mas a dança?

Artes da cena, artes do espetáculo, artes vivas, artes da presença. Os tantos nomes, em tantas línguas, insistem naquilo que é mais caro a essas produções: o juntos, aqui e agora, gente em frente de gente. Quão menos vivas são as artes cênicas sem a presença?

Nessa nova situação, dar o play juntos acabou sobrando como a única possibilidade de estarmos juntos. A estratégia cria um momento único, e tenta replicar aquilo que não é replicável: o estar juntos, em presença, frente a artistas fazendo arte para nós, só ali, só naquele momento.

O excesso de comentários nos chats desses videos ilustra bem a nossa carência e a vontade de estar juntos. Estamos, de algum jeito, juntos. Mas é um junto bem diferente do que somos acostumados. Novo normal, talvez. Mas é um baita desafio, pensando em fazer e em assistir dança.

 

* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.

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Henrique Rochelle

Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.