Cidade, cenário e casa

A  rua vira cena, e a dança e o mundo lá fora vão entrando no espaço pessoal da nossa casa

A arte pandêmica tem um efeito peculiar de transformar espaços cotidianos. De casa, dando aulas, em reuniões, ou conversando com amigos, ao longo desse tempo, cada vez mais os espaços ao meu redor foram virando cenário. Cenário onde a gente vive, mas cenário que os outros às vezes podem parar pra assistir.

A estante, o quarto, o quintal, e os arredores, agora são transmitidos como palcos. Pelas transmissões eu, daqui de casa, entro em teatros, em salas, em ruas, em praças, em prédios. Invado um pouco a vida e o cenário dos outros.

O espaço pessoal, privado, individual, assim como o espaço público e coletivo, viram cena. Esse assunto me bateu essa semana assistindo à programação do Visões Urbanas. Agora na sua 13ª edição, o festival sempre carregou a marca de criar espaços cênicos dentro do espaço urbano.

O que mudou bruscamente na experiência é que antes ele nos levava pra rua, pra ver a rua se transformar em palco. Mas agora a gente quase que não pode ir pra rua.

A proposta de um festival de dança em paisagens urbanas ressignifica lugares comuns da cidade. Lugares por onde a gente passa, pros quais a gente olha, e que ganhavam nova cara, com a gente indo lá pra ver o espaço se transformar em dança, e a dança se transformar em espaço.

A cidade — a paisagem que às vezes faz parte do dia a dia, do caminho, do transporte, da correria de ir, até desatento, de um ponto a outro — vira cenário. E mesmo indo pra rua pra ver isso acontecer, mesmo preparado e sabendo o que vinha, a gente ainda encontrava a surpresa de quem só tava pela rua, só tava vivendo, e de repente tropeçou em dança, e virou companheiro de plateia.

Agora, no meio desse nosso momento, a rua é um espaço tão distante e tão inesperado quanto o próprio palco. A ideia de ir ao teatro é quase tão exótica quando a ideia de ir pro Viaduto do Chá pra ver a escada da fonte se transformar em palco.

A solução que essa edição do evento encontra é apoiada em muito do que toda a arte tem encontrado: o virtual. Veja bem o percurso: o espaço urbano que se transforma em cênico, que se transforma em video, que entra no espaço pessoal da minha casa pra entregar duas coisas que são tão raras e tão queridas nesse momento: arte, e o mundo lá fora.h

Com as restrições de casa, “lá fora” se tornou mais ritualizado, mais espetacular, mais exótico, e mais alheio. Há anos, artistas e eventos como esse se esforçam pra fazer a gente olhar pro fora, pra rua, pra cidade, como um espaço que é nosso: tão nosso que nele a gente faz, e compartilha, e assiste a dança.

Essa insistência em manter esse tipo de produção, esse tipo de olhar, ajuda a mostrar que, por mais que estejamos em casa, por mais que a gente sinta que agora a rua não nos pertence, ela ainda é nossa. Pra dançar, inclusive. E torcendo pra, logo, podermos dançar (e assistir) juntos.

 

(O 13º Visões Urbanas acaba hoje, dia da publicação dessa coluna, mas parte da programação do evento continua acessível no Youtube.)

 

* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.

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Henrique Rochelle

Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.