Foto: Dainius Putinas
Por Paula Zonzini
A artista francesa Anne-Marie Van –de nome artístico, Nach – nasceu no subúrbio de Paris, distante de sua ancestralidade, mas traz a complexidade de sua identidade em seu primeiro solo: Cela ou Cellule –apresentado nos dias: 26 e 27/09, no Sesc-Espaço Expositivo/ Galpão 2, em Campinas, e 30/09, no Sesc 14 Bis, em São Paulo– como parte da 14ª edição da Bienal Sesc de Dança/Temporada França-Brasil, 2025.
Num jogo de palavras, nomeia a peça em português como Cela, e não célula –tradução fiel do francês–, abrindo espaço para o conceito de um corpo-prisão, a ser libertado.
Nesta edição da Bienal, a dança é trazida como possibilidade de recriação de valores sociais e comunidades, ampliando a visão sobre realidades diversas na arte e na construção de um novo mundo. Entre passado ancestral, estigmas e resistências, a dança aparece como linguagem expressiva de transformação e potência, que une e promove encontros com significado, capazes de “fermentar” reflexões e sensibilizar. Ações formativas, pontos de encontro e ocupações inéditas, aproximam ainda mais artista e público, nesta edição. E é sobre e sob este terreno, que se apresenta Nach em sua obra, aprofundando e questionando os enquadres impostos sobre si e as (im)possibilidades de resposta frente a essas opressões.
Com múltipla linguagem, parte de sua experiência pessoal como sustentação fundamental. Sua formação vem das ruas, da pesquisa viva que abarca o Krump – estilo derivado do hip-hop como reação aos conflitos raciais e opressão policial em bairros da periferia de Los Angeles–, como também do butô, do flamenco, do balé clássico, do teatro de rua, do rap, e do que mais tiver vibração criativa, ou “nos espaços de genialidade”, conforme diz Nach. Sua necessidade é de questionamentos políticos e expressões potentes. E isso não falta em Cela; que inscreve na força da simplicidade, sua escrita narrativa.
A cena apresenta-se com escuridão na plateia, o palco é preenchido por ruídos, sons de passos e algumas projeções. O branco e o preto instauram-se nos painéis ao fundo do palco. Surgem imagens de cabeças de pessoas em trânsito. Uma luz forte, frontal, direciona-se às cadeiras do público. As cabeças das pessoas à frente, na plateia, ficam numa contraluz, mesclando-se com as cabeças das imagens projetadas nas telas do palco. De maneira sutil e delicada, conecta e integra a ação que acontece no palco, com o espectador, na plateia. A cena funde-se num jogo de luz, sombra e composição. Atrás dos painéis podemos observar profundidade e movimento ao som de gritos na multidão. A primeira cena já conta sobre as nuances e camadas que serão sobrepostas na peça, e convida à participação.
Nach aparece na frente do palco, no silêncio, de moletom –vestimenta típica das danças urbanas– porém bastante colorido, em contraste com o branco e preto das telas. As cores tingem o cenário branco e preto de nuances afetivas. Sua movimentação é minimalista, decupada e precisa, e uma grande força contida expressa-se em bruta poesia, mostrando tensão, alívio, desconstrução, harmonia, e presença concisa. A batida firme no chão mostra um ato de resistência e permanência no espaço, porém, os contrastes aparecem sempre presentes, e o jogo de luz continua. A partir de um black out, a artista acende uma lanterna, que ao movimentar-se vai revelando poeticamente, partes do próprio corpo. Em um dueto com a luz, vai criando hipnóticos rastros na escuridão, desenhos de sua presença potente, delicada e efêmera.
Pela primeira vez, o espectador vê cor nos painéis; na frente de uma bela luz azul, de costas para o público, sua sombra é projetada. Como num encontro com partes de si mesma, inicia uma dança leve e delicada, carregada de poesia, que vai despindo-se do uniforme de batalha, vulnerabilizando-se. O gestual ganha outro ritmo e outro plano, o chão. Na entrega do seu peso, relaxa seu tônus muscular, enche seu ventre de ar e seu corpo fica grávido de novas possibilidades. Ela mostra sim, que é possível resistir e “fincar o pé”, sem perder a sensibilidade. Despida dos moldes, estigmas e definições, mostra-se livre para ser, em constante movimento. Sua presença é tocante, sua luta é única, e lembra que é possível alçar voos para além dos muros que aprisionam.
A trilha sonora acompanha a diversidade dos afetos, pluralidade das linguagens de movimento e nuances da corporeidade– ora com músicas urbanas, ruídos ou líricas. Nem as palavras projetadas nos painéis que estão no palco, dão conta de descrever a sua dança, ainda bem! Definitivamente, definir seria reduzir, neste caso. A expressão da artista comove, ampliando eco para além das paredes-muros e abrindo brecha para a brisa leve da esperança. O trabalho da artista foi um respiro diante dos temas tão densos, difíceis e profundos da Bienal, apontando a dança como ritual e caminho possível de conexão, liberdade e reparação.
Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães e da Profa. Dra. Cássia Navas Alves de Castro, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 14ª Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.

Paula Zonzini
Mestranda em Artes da Cena pela UNICAMP. É Bailarina formada pela Royal Academy of Dancing of London. Integrou a Cia. Cisne Negro e Balé da Cidade de São Paulo, na qual foi bailarina premiada (APCA/97). Foi Assistente de Direção, Intérprete Criadora e Preparadora de Elenco do Projeto Mov_oLA. Contemplada pelo Prêmio Denilto Gomes (2015). Integra o grupo de Pesquisa GEPETO- coordenado pela professora-doutora Cássia Navas Alves de Castro. Psicóloga, Especialista em Técnicas Corporais (Sedes Sapientiae). Psicoterapeuta junguiana com ênfase em Educação Somática, Movimento e Calatonia.
PPG Artes da Cena/UNICAMP