Bailarino não fala

Eu já ouvi alguém dizer que, em cena, “bailarino não fala”.  Fala! Oh, se fala. Mas eu espero que fale tão bem quanto dança.

Às vezes parece que eu tenho problemas com dança que tem fala. Mas o meu problema não é com a existência de fala: é com a realização, muitas vezes, capenga.

Várias propostas contemporâneas atravessaram uma fronteira: não o colocar fala em cena, mas o colocar essa fala em pessoas não necessariamente preparadas. Assim como se abriu espaço pra dança de todo mundo (e qualquer um) — dança separada de uma técnica de dança — também se abriu espaço pra voz de todo mundo, ainda que sem técnica, ainda que sem expressividade.

Isso não é um problema de sinceridade: todo mundo pode falar coisas sinceras e tocantes. É uma questão cênica. E o grande risco que aparece no tanto de trabalhos que incluem fala e pouco trabalho vocal é o de o todo soar banal.

Não é porque um bailarino treinou por décadas a expressividade corporal, que a expressividade vocal foi treinada junto no processo.

Tem muita gente que insiste. O desejo de ter voz, de se expressar, são reais. Mas eu sempre me surpreendo com a escolha de enfraquecer a expressividade cênica, enfraquecer a expressividade do movimento, enfraquecer a expressividade da dança, pra garantir que a gente ouça o seu timbre, naquele momento, por nenhum motivo além de “eu quero ser ouvido”.

Que todo mundo tem alguma coisa pra dizer eu não duvido. Mas os encaixes… Aquele bailarino, naquele trabalho, com aquele texto. São escolhas. Estéticas, de direção. E às vezes problemáticas.

Clarice Lispector não é uma lista de compras que você enfia amassada no bolso pra ir ao supermercado. E não deveria ser tratada como como se fosse. Deixo de lado os grandes exemplos: nada além de uma lista de compras deveria ter esse tratamento de banalidade.

Porque mesmo as propostas que fogem de técnicas estabelecidas buscam a força daquilo que é natural. Natural como caminhar, natural como um grito de dor, natural como uma confissão amorosa, natural como estar presente.

O problema é que “natural” é uma tradução cênica complicada. Pouco preparo e pronto: deslizamos pro banal. A gente perde a descoberta do natural na cena, e o que a gente encontra é o esforço doído de se performar como se estivesse em um estado natural. E poucas coisas mostram tanto isso, na dança hoje em dia, como essa insistência na fala.

Eu já ouvi uma professora dizer que “bailarino não fala”. Eu discordo. Fala, e tem que falar mesmo. E deve falar na vida e pode falar na cena. Mas, na cena, eu espero que fale tão bem quanto dança.


* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.

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Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.