Ancestralidades em resgate

Foto: Mayra Wallraff

Por Josie Berezin

Ao adentrar no Teatro Municipal Castro Mendes, em Campinas, para assistir ao espetáculo “EXÓTICA – Sobre a História Racializada da Dança Europeia”, no penúltimo dia da 14ª Bienal de Dança do Sesc Campinas (dia 04 de outubro), às 19h, o público já se depara com uma ambientação peculiar. Nota-se a plateia bastante esfumaçada, e aos poucos um aroma de rapé toma conta do ambiente – e se torna mais forte à medida que se vê integrantes do espetáculo se aproximarem de cada pessoa do público, oferecendo o contato de perto com o defumador que utiliza. Ao olhar adiante, uma forte luz azul emana do palco, e o palco está envolto em um suntuoso cenário que se assimila a plantas ornamentais, tal qual um cenário de ópera clássica. Sons da natureza compõem essa paisagem: sons de água, animais, insetos. Elementos que buscam trazer aspectos sensoriais às experiências cênicas do espectador.

Ainda antes das luzes se apagarem por completo, uma senhora vem ao palco em uma conversa simples e franca com o público, em um ato de rompimento com a quarta parede do teatro. Propõe que, de olhos fechados, o público siga alguns exercícios imaginários, e faz uma guiança oral detalhada, sugerindo uma lembrança ou imaginação de ancestrais queridos a cada espectador, das famílias paternas e maternas. E ainda pergunta: de qual ancestral os espectadores têm uma boa memória ou registro? Qual os acompanham em pensamento ainda hoje? Qual se deseja convidar para estar em memória naquele momento?

A senhora menciona alguns nomes: La Sarabia, Nyota Inyoka, François Feral Benga, Leila Bederkhan. São nomes conhecidos para alguém da plateia? – ela pergunta. A plateia responde de forma negativa com a cabeça. E ela segue com a provocação: ninguém conhece mesmo? Pois são artistas de sucesso nos palcos europeus no início do século XX, pessoas não brancas, que tiveram suas trajetórias apagadas da narrativa em torno da dança ocidental, segundo ela. Artistas que estão inclusive retratados no livro La Danse d’Aujourd’hui (A Dança de hoje), de 1929, do autor André Levinson, mas que não foram mencionados em nenhum outro livro de relevância da historiografia ocidental da dança. A origem dos artistas é franco-indiana, senegalesa, chilena-mexicana, e curda – e tendo apresentado danças não-europeias, suas danças foram consideradas como étnicas e exóticas aos olhos do grande público. Ou seja, danças de um determinado grupo que, por não ser de origem europeia, foram excluídas da narrativa da história da dança.

A provocação estava posta. Num palco de não menos importância que o Teatro Municipal Castro Mendes, e com um cenário à altura de receber qualquer artista ou companhia de dança de grande renome para a história, o espetáculo já se mostrava a que vinha. A senhora do início é Amanda Piña, artista chileno-mexicana-austríaca, diretora artística do grupo. E mostra os pequenos altares nas laterais do palco, em que há fotos dos quatro artistas mencionados, assim como velas, incensos e outro objetos sagrados, que guardam a intenção de trazer as suas presenças.

Após este prelúdio da peça, por assim dizer, um tanto sensível, Piña convida variados pequenos grupos ao palco, um a cada vez, para trazerem suas danças, como representação de um resgate do legado desses artistas. Sobem ao palco Ángela Muñoz, André Bared Kabangu Bakambay,! SaAc Espinosa Hidrobo e Venuri Perera, artistas periféricos cuja linguagens artísticas se assemelham a modalidades de danças urbanas, com alguma inspiração em danças afro-latino-americanos e de povos originários latinos, numa simbólica celebração de resistências plurais.

Toda esta ambientação preparada para receber o público no teatro, assim como o ritual feito por Piña no início do espetáculo, criam um espaço quase sagrado de simbologias e ancestralidades. A imaginação e a memória pessoal de cada pessoa do público se tornam mais viva com o exercício de rememoração que ela propõe, em uma proposta um tanto incomum dentro de um teatro, numa comunicação direta e livre com a plateia. E essa parece ser uma forma muito original e interessante para dar início a um espetáculo com essa temática, como em um resgate da ancestralidade dos espectadores, que prepara para o resgate da uma história esquecida (ou menosprezada) da dança. Também o questionamento que ela traz sobre o (re)conhecimento da história desses artistas é algo muito válido para se (re)pensar, sempre e de novo, a história da dança ocidental. Instiga a logo pesquisar sobre esses nomes, para um exercício quase imediato de reparação – ou numa intenção de apagar o apagamento ocorrido.

Os grupos que vêm se apresentar em seguida da fala dela ainda fazem um curto ritual de lembrança dos artistas antepassados, em continuidade à proposta de Piña. Os grupos não trazem a identificação de uma unidade entre os dançarinos e as danças apresentadas, mas vêm em uma proposta de “teatro de variedades” (como consta na sinopse do espetáculo). Cada um com sua linguagem, vem resgatar a força das danças periféricas, não-europeias, e que não partilham do discurso hegemônico atual das narrativas da dança.  Assim, “Exótica” vem evidenciar o questionamento sobre modos de construção da história da dança, assim como a importância que deve ser conferida à celebração das ancestralidades diversas.

 

Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães e da Profauu. Dra. Cássia Navas Alves de Castro, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 14ª Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.

 

Josie Berezin

É bailarina, pesquisadora, produtora cultural e professora de dança para mães e bebês. Foi recentemente produtora artístico-pedagógica no Centro de Referência da Dança e hoje atua como produtora de grupos como Coletivo Ruínas, Cia Pássaro de Presságio, LAPETT, entre outros. Com graduação em Sociologia e especialização em Gestão Cultural, Josie é mestra e doutoranda em Artes da Cena pelo Instituto de Artes, UNICAMP, na linha de pesquisa Arte e Contexto.

PPG Artes da Cena/UNICAMP

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O Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena tem como objetivo a formação de pessoal qualificado para atuar na pesquisa e no ensino de campos pertinentes às artes da cena, quais sejam, o teatro, a dança, a performance, em interlocução ou não com outras artes presenciais, promovendo difusão de conhecimento mediante a colaboração de seus pesquisadores junto a periódicos especializados, eventos científicos da área e, no que concerne à extensão e socialização do conhecimento, apresentação pública dos espetáculos e performances produzidos como fruto das pesquisas.