Agradecimento, aproximação, reverência

No final do espetáculo, a gente se aproxima. ‘Eu tô aqui. Em silêncio, mas eu tô aqui. Com você.

Sabe uma coisa que me faz falta na dança em vídeo? O momento dos agradecimentos. Eu demorei pra reparar isso, mas a mesma sensação de que falta alguma coisa que eu tenho no início pouco cerimonioso do dar o play, ou do entrar numa sala do zoom, também me bate no final dos trabalhos.

Talvez seja pura convenção, mas os aplausos e agradecimentos expressavam muito pra mim. É algo pra além de poder comentar. Não é uma questão de responder, ou de dar um retorno sobre a obra ou a minha apreciação. Não é sobre se eu gostei. Mais que isso, é um momento de contato.

É a hora em que a gente limpa os efeitos de palco. Não tem mais o clima da luz, da trilha, do cenário. Tudo fica um tanto mais cru e aquelas criaturas da cena vêm pra um momento mais próximo: gente na frente de gente. Cai a máscara da interpretação, sobra o intérprete, a pessoa por trás da arte.

Vendo bailarinos agradecendo, eu sempre me lembro das reverências em aulas de balé. Do hábito de de agradecer voltado para um ponto específico, às vezes até uma foto (de uma mestra, de um mestre). Questões de se aproximar, de reconhecimento e agradecimento.

A reverência era um ritual gostoso. Ainda mais gostosa é a descoberta dessa cerimônia pelo outro lado, da plateia.

Tem quem diga que as palmas servem pra liberar a energia que o público segura ao longo da obra. Na minha cabeça também sempre teve um outro lado, mais com cara de conversa. Como se a gente respondesse “eu tô aqui. Eu tô vendo isso tudo que você tem pra me mostrar. Eu tô aqui, em silêncio e no escuro, mas eu tô aqui. Com você.”

Nem todo estar junto é bom. Nem todo estar junto é caloroso, ou carinhoso. Faz parte. Mas em algumas conversas a gente se entrega um pouco mais. Perde a noção da hora, esquece da vida, desliga do mundo.

Na tela, o desligar é mais fácil, mas o desligar do mundo é mais difícil. Durante a obra, as chances de eu esquecer que estou ali, sentado em casa, são poucas. Mesmo quando é esse o caso, a falta de cerimônia do encerramento bate com tudo.

O tempo dos agradecimentos sempre garantiu um tempo pra se recompor. Pra platéia também, deixar de ser público e voltar a ser gente. Dali até sair do teatro é um outro processo. Até voltar pra casa, as coisas vão se digerindo. Agora, em alguns passos a gente volta pra cozinha pra terminar a janta, ou lavar a louça.

No virtual, a troca é difícil. E dentro dessa realidade, a gente vai adaptando. Enviando likes, emojis, comentários. De “boa noite” a “obrigado”, a gente vai achando jeitos de deixar uma marca. De registrar um “eu estava aqui”, “eu estava com você”. Sem ver os olhos. Às vezes só com créditos correndo na tela. Só numa reverência imóvel e silenciosa, desligando a tela do computador.

 

* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.

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Henrique Rochelle

Henrique Rochelle

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Crítico de dança, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP), fez pós-doutoramento na Escola de Comunicações e Artes (USP), onde foi Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas. Editor do site Outra Dança, é parecerista do PRONAC, redator da Enciclopédia Itaú Cultural, Coordenador do método upgrade.BR de formação em dança, e faz parte da Comissão de Dança da APCA desde 2016.