A mon seul désir:  por trás das tessituras da sexualidade feminina

Foto: Danielle Voirin

Por Paula Madueño Zonzini

Gaëlle Bourges é artista francesa de formação múltipla; transitou entre canto, teatro musical, balé clássico, sapateado e jazz, como também dança contemporânea, na École Paris-Centre; se interessa pelas práticas somáticas e é a idealizadora da Cia. Association Os. Criou a peça A mon seul désir, apresentada na 14ª edição da Bienal Sesc de Dança-2025, nos dias 26 e 27/09 – no Teatro Castro Mendes, em Campinas – e 4 e 5/10, no Sesc Belenzinho – em São Paulo.

Na peça, a artista parte de sua experiência pessoal no contato com a obra A Dama e o Unicórnio, quando em um dia de extremo verão europeu, procura abrigo nas câmaras frias do Museé de Cluny, em Paris.  A beleza da obra –composta por cinco tapeçarias que aludem aos cinco sentidos e uma sexta, misteriosa, com a descrição: Ao meu único desejo–, encanta a artista.  Seu corpo quente, no espaço frio, anuncia a experiência de contradições e ambivalências na sua leitura frente à obra, datada do século XV. Enigmas e estigmas envolta da sexualidade feminina são representados através das figuras de mulheres virgens, animais-bestas e um animal mitológico – o unicórnio. A partir do contato com as tapeçarias, a obra de Gaëlle propõe um olhar crítico à visão de uma época na qual o corpo feminino está vinculado à negação dos instintos, e a exaltação da virgindade.

Seguindo a visão da época, apresenta coelhos representando a luxúria e a libido descontrolada, em contraposição ao cavalo-etéreo (unicórnio) e seus instintos embotados, relacionando-o à pureza das mulheres. O unicórnio –sob essa perspectiva– símbolo de moralidade, denuncia o status da sexualidade da mulher à sociedade, na medida em que se comporta bem apenas diante das virgens.

A cortina é aberta e o silêncio da cena é penetrado por uma audiodescrição, que vai contando tudo o que o público vê no palco: quatro figuras escuras, em uma contraluz, sobrepostas a uma parede de tapeçaria de vermelho intenso iluminada, que começam a se mover discretamente, revelando aos poucos, corpos femininos seminus.  As quatro mulheres desenrolam um tapete de linóleo branco no chão, num gesto que remete à abertura de uma grande tapeçaria. Voltam-se para as araras do lado esquerdo do palco em busca de bolsas/sacolas que penduram em seus pescoços. Nuas, de costas para o público, em gestos minimalistas e delicados, abaixam-se e vão retirando, lentamente, flores das sacolas, criando um grande campo suspenso de flores brancas, presas na parede vermelha de tapeçaria. O enfoque aqui, não é o branco-pureza sendo maculado pelo vermelho sangue, mas o seu oposto; uma construção da sutileza casta, singela, sobreposta à intensa parede vermelha.

Depois do muro de delicadeza armado, as mulheres voltam-se novamente às araras e pegam máscaras de animais. Eis que surgem uma raposa astuta, um coelho libidinoso, um macaco plagiário e um papagaio repetidor.  A voz feminina da audiodescrição segue conduzindo ininterruptamente toda a cena e nos lembra que “não há nudez na natureza”.  Uma das mulheres retira sua máscara e serve de cabide para que as mulheres animalescas a vistam com um volumoso vestido de época, que contém em sua saia uma grande fenda vertical no seu centro, capaz de abarcar o imaginário masculino.  A partir deste momento, surge a representação da mulher “nobre”, que ostenta o poder na riqueza do ouro em suas vestes, cobrindo seu corpo erótico. Num gesto surpreendente, vira-se de costas e o público nota que, vista por trás, está nua. “A moça só é virgem de frente”.

O tapete vermelho, pintado de flores brancas, serve agora de tela, na qual as figuras das tapeçarias se sobrepõem como no momento anterior ao seu registro. Em movimento, contam sobre si até se fixarem em imagem cristalizada.  Todas as tapeçarias são assim construídas, e é só na sexta imagem –o sexto sentido, desejo fundamental–que a cortina cai. O tapete vermelho é retirado, e por trás deste primeiro plano, surge o belo unicórnio, majestoso, e agora irônico, revelando o lado oculto por trás da aparência. Aqui já aparece como símbolo mais complexo, integrado, abarcando em si, as próprias contradições.

Luzes estroboscópicas frenéticas e, pela primeira vez, uma música distorcida no lugar da palavra, tentam conduzir a um universo mais primitivo e instintivo da experiência.  A velocidade em que se replicam os corpos nus de vários gêneros e idades com máscaras de coelho–voluntários que foram convidados previamente a participarem do espetáculo–designam a fantasia de descontrole da sexualidade feminina.  É neste ponto, sobretudo, que a riqueza das belas imagens, signos e símbolos da obra, se sobrepõe à potência dos corpos, que na contramão da proposta da artista, seguem contidos.

A obra procura um caminho possível de dissolução dos bloqueios morais em relação à libido, capaz de produzir um outro imaginário da sexualidade feminina. Entretanto, a cena final não traz a força em ação, também nos corpos, tão desejada pela artista, dando a sensação de que esse imaginário ainda está longe de ser construindo em liberdade, nos espaços amplos e calorosos do desejo, mantendo-se ainda em cômodos frios e climatizados artificialmente.

Na movimentação, alguns estereótipos seguem o adestramento do corpo polido– os artistas mantêm-se enfileirados e de mãos dadas, numa grande farândola –dança típica do sudeste da França. O corpo não aparece suficientemente vitalizado e potente, mas sim, seguindo normas e signos contidos; a liberdade e ruptura de padrão, aparece apenas na ideia, quase nada na corporeidade. Onde estariam libido e fantasia, senão no corpo? Espontaneidade, expressividade, contrastes, fluxos livres em conexão com outros corpos, ou com o próprio espaço, não são vistos. A nudez completa, não é o bastante. E a quebra de um antigo imaginário da sexualidade feminina – proposta da artista–parece mesmo ficar distante.  O espetáculo todo é conduzido por uma audiodescrição, terminando com um “this is the end”, deixando, com isso, poucas fendas abertas para a criação de novas imagens potentes a serem tecidas na história da sexualidade feminina.


Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães e da Profa. Dra. Cássia Navas Alves de Castro, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 14ª Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.

 

Paula Zonzini

Mestranda em Artes da Cena pela UNICAMP. É Bailarina formada pela Royal Academy of Dancing of London. Integrou a Cia. Cisne Negro e Balé da Cidade de São Paulo, na qual foi bailarina premiada (APCA/97). Foi Assistente de Direção, Intérprete Criadora e reparadora de Elenco do Projeto Mov_oLA. Contemplada pelo Prêmio Denilto Gomes (2015). Integra o grupo de Pesquisa GEPETO- coordenado pela professora-doutora Cássia NavasAlves de Castro. Psicóloga, Especialista em técnicas Corporais (Sedes Sapientiae). Psicoterapeuta junguiana com ênfase em Educação Somática, Movimento e Calatonia.

PPG Artes da Cena/UNICAMP

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O Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena tem como objetivo a formação de pessoal qualificado para atuar na pesquisa e no ensino de campos pertinentes às artes da cena, quais sejam, o teatro, a dança, a performance, em interlocução ou não com outras artes presenciais, promovendo difusão de conhecimento mediante a colaboração de seus pesquisadores junto a periódicos especializados, eventos científicos da área e, no que concerne à extensão e socialização do conhecimento, apresentação pública dos espetáculos e performances produzidos como fruto das pesquisas.