A Dança quando em despropósito

Foto: Mayra Azzi

Por Josie Berezin

Duas cadeiras e dois bailarinos em cena. Assim tem início a peça “Kdeiraz”, apresentada na programação da 14ª edição da Bienal de Dança do Sesc Campinas, às 14h do sábado, dia 04 de outubro. Não há cenário, ou o cenário é a própria abertura para o jardim do CisGuanabara, em Campinas, com sua paisagem longínqua ao fundo do espaço cênico. Na plateia, um tapete de E.V.A. disposto no chão convida crianças e suas famílias a se aproximarem e se acomodarem. Os bailarinos logo atraem a atenção do público – especialmente das crianças – com as mini-cadeiras feitas de bexigas coloridas.

Durante a peça, as cadeiras dispostas em cena se movem como se fossem personagens – e, junto aos bailarinos, se divertem com brincadeiras corporais. As cadeiras fazem as vezes também de figuras provocadoras, em que se mostram como elemento desafiador que os bailarinos testam formas de lidar e brincar, ao mesmo tempo. Cadeira para um lado, cadeira para o outro, para cima, para baixo, sob e sobre os corpos dos bailarinos. As cadeiras compõem a cena com uma certa dose de personalidade e humor, oferecendo seu acento, encosto e as pernas com menos ou mais surpresa nas movimentações, em diálogo com a música.

Os bailarinos Natália Mendonça e Mauricio Alves se deixam atravessar pelas proposições, enquanto criam situações um pouco cômicas para o público adulto, mas certamente mais cômicas para as crianças. Em um jogo de imaginação, é possível até enxergar pelos olhos das crianças algo bastante despropositado acontecendo ali: uma cadeira fora de seu lugar de cadeira. E, se para os adultos essa abstração parece comum, para as crianças oferece um estranhamento engraçado: o que aquela cadeira está fazendo ali? Ainda mais, uma cadeira que apresenta mil possibilidades de usos e brincadeiras – mas não aquela sua função de simples acento, em que as pessoas costumam se sentar e se manter imóveis na escola, no trabalho, ou próximo da mesa de refeição. Ou seja, naquele momento da cena, a cadeira deixa de ser um lugar de disciplina e oferece outras proposições. Olhando para as crianças fascinadas por essa novidade, seria possível até arriscar que elas chegariam em casa prontas para testar as tantas outras formas sugeridas ali de se usar uma cadeira.

Outra coisa que chama a atenção do público infantil é a cadeira em miniatura em cena. Ela tem o tamanho apropriado para as crianças, porém aparece em situações em que os bailarinos adultos fazem uso dela, e com algum esforço para caber nela – naquela cadeira pequena, nitidamente não apropriada para eles. E o inadequado, que logo se apresenta como equívoco, erro, ou esforço sabidamente em vão, provocam muita risada nas crianças. Como um palhaço de circo, que faz de tudo para andar na corda bamba, e com seu jeito meio desajustado acaba se desequilibrando, pois afinal, não é ele o trapezista da história. E assim acontece na peça “Kdeiraz”: cenas desajustadas pela desproporcionalidade da cadeira, em que os bailarinos adultos, enfim, chegam a um gran finale completamente desastroso: um deles se senta e a cadeira se abre! Ele, então, cai sentado no chão, meio desorientado, como uma boa e velha cena de humor.

Da mini cadeira destruída, restam agora os pedaços de madeira. Mas longe de ser este o fim da história. Como num recomeço, abre-se novas possibilidades de brincadeiras: os pedaços ganham novas vidas, e passam a assumir e a construir muitas formas diferentes nas mãos dos bailarinos. Até que chega à cena uma outra cadeira; dessa vez, uma cadeira com pernas gigantes. Também em cenas despropositadas: suas pernas gigantes são instáveis e não fixam bem no chão, de forma que não é possível se sentar também nesta cadeira. Mais uma vez, a cadeira se vale como uma des-cadeira, ou um objeto outro de brincadeira e experimentação.

Assim, em “Kdeiraz”, as brincadeiras viram danças, e as danças são brincadeiras também. E é interessante assistir ao público assistir à apresentação, que se envolve com bastante curiosidade e entusiasmo com o espetáculo. A maior prova do envolvimento que uma apresentação de dança pode gerar no corpo de seu espectador é vê-lo sair dançando do teatro. E foi o que aconteceu ao fim de “Kdeiraz”: uma criança aproveitou o espaço que havia lá no jardim, ao lado do espaço onde foi a apresentação, e começou a se mover de um lado a outro. Ela brincava-dançava sem formas definidas, talvez experimentando movimentos que seu corpo tinha registrado há pouco.

Após “Kdeiraz”, ainda houve três outras apresentações consecutivas voltadas ao público infantil no mesmo local do Cis Guanabara no dia: “O Diário de Duas Bicicletas”, do Grupo Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira, “Mané Boneco”, do Zumb.Boys, e por fim, uma jam infantil, com o Coletivo Artístico SalaMUDA. Dessa maneira, com um total de quatro apresentações de dança seguidas, no período das 14h às 18h, a Bienal ofereceu uma programação, naquele sábado, que favoreceu às famílias chegarem a seu tempo para aproveitar. Com diferentes formatos e linguagens, e algumas apresentações interativas para que o público pudesse também compor trechos dos espetáculos, adultos e crianças foram convidados a olhar e sentir aquele tempo e espaço de uma outra forma, com movimentos, brincadeiras, e algum despropósito no ar. Uma programação muito acertada nesta edição da Bienal de Dança, que vem buscando formas de abranger também o público infantil e de famílias entre seus espectadores.

 

Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães e da Profa. Dra. Cássia Navas Alves de Castro, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 14ª Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.

 

Josie Berezin

É bailarina, pesquisadora, produtora cultural e professora de dança para mães e bebês. Foi recentemente produtora artístico-pedagógica no Centro de Referência da Dança e hoje atua como produtora de grupos como Coletivo Ruínas, Cia Pássaro de Presságio, LAPETT, entre outros. Com graduação em Sociologia e especialização em Gestão Cultural, Josie é mestra e doutoranda em Artes da Cena pelo Instituto de Artes, UNICAMP, na linha de pesquisa Arte e Contexto.

PPG Artes da Cena/UNICAMP

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O Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena tem como objetivo a formação de pessoal qualificado para atuar na pesquisa e no ensino de campos pertinentes às artes da cena, quais sejam, o teatro, a dança, a performance, em interlocução ou não com outras artes presenciais, promovendo difusão de conhecimento mediante a colaboração de seus pesquisadores junto a periódicos especializados, eventos científicos da área e, no que concerne à extensão e socialização do conhecimento, apresentação pública dos espetáculos e performances produzidos como fruto das pesquisas.