MUSEU DA DANÇA

Tango: música, dança, musicalidade

Terça, 13 de Setembro de 2022 | por Portal MUD |

Por Dionatan Tissot 

Muito se fala sobre a musicalidade no tango e não são raras as ofertas de aulas e cursos que encontramos tomando-a por mote. Mas se ensina musicalidade? Ou não se ensina, mas se adquire mediante exercício? Ou não se adquire musicalidade de nenhuma dessas duas formas, mas as pessoas que a possuem a possuem naturalmente ou por alguma outra razão? O caminho natural de resolução dessas questões é talvez nos perguntarmos o que é a musicalidade, mas não tenho qualquer interesse em responder essa questão aqui. Mas digamos, grosso modo, que musicalidade é a habilidade de expressar belamente na dança aquilo que se ouve na música que se está dançando.

Uma definição tão geral e abstrata que pouco informa sobre como ser musical. Por isso, prefiro falar do que me parece ser, se não uma das condições da musicalidade na dança, algo que muito ajuda no processo de expressão do que ouvimos: conhecer a sonoridade das orquestras e o repertório coreográfico que representam diferentes estágios do desenvolvimento da rica manifestação cultural tangueira, que compreende não só a música, a dança, a poesia e mesmo a literatura, mas também rituais sociais complexos. Não posso, contudo, no diminuto espaço de que disponho, traçar um panorama amplo da evolução da música e da coreografia do tango. Por isso, limitar-me-ei a meia dúzia de exemplos que captem bem o que quero dizer, referindo-me a algumas das orquestras que mais ouvimos quando vamos a uma milonga e que julgo representativas da variedade musical do tango. Todos os exemplos aqui citados em dança e em música podem ser facilmente encontrados no Youtube.

O tango nasce em algum momento na transição do século XIX para o século XX, mas ganha a forma pela qual o conhecemos hoje no decorrer da transição entre o fim da década de 1910 e o início da década de 1940. Os anos que vão de 1935 a 1945, mais ou menos, marcam o que se chama amiúde de “década dourada” do tango, onde não só as bases musicais e poéticas do gênero se cristalizaram, mas também os fundamentos coreográficos da dança. O paralelismo música-e-dança seguramente não é casual. Se se ouve com calma uma orquestra como a de Roberto Firpo ou de Francisco Canaro dos anos 1920-30, entende-se por que os giros ainda não faziam parte do repertório de passos dos tangueiros de então.



Entende-se também o porquê do esquema rítmico 1, 1-e-2 que podemos ver claramente ainda na década de noventa nos movimentos da mítica bailarina Carmencita Calderón e seu parceiro Juan Averna. O caminhar elegante e o cruze solene, talvez marca distintiva do tango atual, precisam de outro tipo de música, a praticada por Osvaldo Fresedo, por exemplo, já no final dos anos 1920: a doçura fluída e sem muitos contrastes convida a um tango caminhado e calmo, próprio a salões aristocráticos da classe endinheirada para os quais costumava tocar. 


Se em “Maldonado”, gravação de 1928 com Ernesto Famá como estribilhista, Fresedo ainda reproduz o pesado e arrastado compasso funeral que marcou o tango até 1935, “Buscándote”, gravada em 1941 com a voz de Ricardo Ruiz, exige um outro tipo de coreografia para bem expressar a fluidez e as nuances da delicada canção.



É o tango “de salão”, quase sem passos de execução complicada, que melhor responderá às exigências sutis da orquestra. Atentem para uma das mais belas cenas do filme Tango, de Carlos Saura, onde Juan Carlos Copes, interpretando a personagem Carlos Nebbia, desloca-se calmamente ao som de “Recuerdo”, tocado pela orquestra típica que lhe serve de pano de fundo, sobre um pequeno palco. A título de curiosidade: a orquestra (“Orchestra Ensemble”), ao que parece montada ad hoc, era dirigida por Lalo Schifrin, o compositor da icônica “Mission: impossible” do seriado da década de 1960.



Como disse, o ano de 1935 inaugura a grande era de ouro do tango. É neste ano que D’Arienzo grava, entre outros tangos, “Nueve de Julio”. A inovação que se apresenta é o acento fortíssimo em todos os quatro tempos do compasso e a velocidade extraordinária.

D’Arienzo arrasta consigo a maioria das orquestras da época, e a febre tangueira toma conta como nunca de Buenos Aires. Compreende-se que seja aqui que a coreografia se torna mais complexa e virtuosística, giros velozes e ganchos, como uma vez disse Antonio Todaro, ele próprio um grande exemplo de como transpor à pista o alucinante martelo do Rei do Compasso. O empolgante improviso de Puppy Castello e Graciela Gonzales de “El cencerro”, no espetáculo dirigido por Marisa Galindo em 1991 no Teatro de La Provincia, talvez seja a melhor exibição já feita ao som dessa gravação.



Era ao som de Osvaldo Pugliese, porém, que Puppy costumava exceler em suas exibições. A orquestra, formada no início da década de 1940, não entrou na “onda D’Arienzo” e desde o princípio mostrou um estilo próprio, cada vez mais idiossincrático.



A orquestra, formada no início da década de 1940, não entrou na “onda D’Arienzo” e desde o princípio mostrou um estilo próprio, cada vez mais idiossincrático. “La yumba”, música cujo título onomatopeico representa o recurso musical mais distintivo da orquestra, dará ao ouvinte as pistas do que encontrará em suas demais gravações.

É talvez o ponto médio entre o milongueríssimo “El Rodeo”, interpretado com maestria por Pocho y Nelly na tradicional casa El Beso, em 2007, e gravações como “Orlando Goñi”, já mais aptas ao palco que à pista. É, contudo, este último Pugliese que parece ser o predileto de uma nova cepa de bailarinos que floresceram a partir da década de 90 – talvez o dramatismo acentuado lhes permita interpretar com mais facilidade e não raramente lhes propicie o motivo sonoro do exagero cênico.



Não passaram intocadas pelo estilo de D’Arienzo duas outras importantes orquestras que sempre ouviremos em uma milonga: a de Aníbal Troilo e a de Carlos Di Sarli. Di Sarli possuía, antes da formação de sua orquestra, um sexteto com estilo bastante peculiar, cuja sonoridade foi parcialmente resgatada em meados dos anos 1940 pela orquestra que se formou a partir dele. No início dos anos 1940, embora a orquestração permanecesse similar, o staccato rápido e forte marcou as gravações da orquestra. Compare-se, por exemplo, a gravação de “Racing Club” do Sexteto em 1930 e a da mesma peça pela Orquestra em 1940.



Ao longo da década de 1940, Di Sarli caminha para execuções mais doces e melódicas, sempre com pouco destaque (o que é surpreendente) a performances virtuosísticas da fileira de bandoneons, natural locomotiva das orquestras. Em Di Sarli, quando o bandoneon ganha independência na execução, normalmente é a mão esquerda que toca as notas graves e soturnas que podemos ouvir nas diversas gravações de “Bahia Blanca”, muito apreciada pelos bailarinos. É talvez nos pés de Gerardo y Marta Portalea que a música de Di Sarli encontrou sua expressão máxima quando se trata do tango-dança.



As gravações de Aníbal Troilo da década de 1940 trazem um mundo de sutilezas e complexidades musicais que desafiam os melhores bailarinos. Mesmo gravações como “Milongueando em el 40”, onde ecos do martelo darienziano não deixam de se fazer presentes, traz uma sofisticada sequência de “síncopas” pouco presentes no tango de então. No início desta década, Astor Piazzolla, responsável ele mesmo por uma revolução no tango dali a pouco menos de vinte anos, foi seu arranjador. Da época datam gravações como “Inpiración”, de 1943, um dos cumes aos que pôde chegar o tango em termos de arranjo e orquestração.



É justamente este tango de difícil intepretação coreográfica  que encontramos o lendário bailarino “Finito”, junto a Maria Teresa, dançando em um curto fragmento que pode ser encontrado facilmente na internet. Além dos passos de grande complexidade, a musicalidade do casal não parece ser facilmente pareada.


Ao conjunto de perguntas que abriu o texto tentei dar uma resposta mediante exemplos, que apontam para estilos muito distintos dentro da música e da dança do tango. Essa resposta contém uma mensagem que me parece ser a mais importante: a de que é necessário apreciar de modo sensível, como objeto mesmo de contemplação, a dança dos criadores do tango-dança ao som da música dos criadores do tango-música. Há um universo a ser descoberto nos pequenos detalhes, que uma aula que lhe ensine a contar tempos, escutar violinos e individuar frases seja talvez incapaz de prover. A dimensão técnica do aprendizado da dança, e mesmo da própria escuta, não pode ser subestimada. Ainda que as peças de Bach exibam uma objetiva perfeição matemática, seguramente não é isso que nos comove n’A Paixão segundo São Mateus. A musicalidade depende de uma sensibilidade que pode ser beneficiada, mas não provida, por um aprendizado técnico – é necessário escuta e experiência.


Dionatan Tissot começou a dançar há mais de 16 anos. Atualmente, faz parte da organização do TangoLAB – USP (Química) e já encabeçou junto a Juliana Maggioli o projeto “Secuencias de la Vieja guardia: una aproximación”, que visa estudar a técnica de antigos milongueiros. Além disso, também já fez a musicalização no Tango na Rua, Mucho Tango Milonga e Arrabalera Tango.


 


 




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