Há 125 dias sem sair de casa pra ver dança, vem um sentimento entre a crise de abstinência e o abandono. Na agenda onde organizo os calendários das temporadas, três meses ficaram vazios. Se no final de março falávamos na esperança de em junho voltar pra plateia, junho já chegou e foi embora. Continuamos em casa.
De casa, entre os trabalhos de antes e os tantos trabalhos novos do isolamento, a gente para um minuto pra dar play em dança. Mas perdemos o rito. O processo (às vezes longo) de chegar até a dança, e vê-la acontecer na nossa frente. Quase ao alcance dos dedos.
Por enquanto, alcançamos o dedo no teclado e no controle e mudamos o pause. Antes, pausávamos o mundo, desligávamos o celular, entrávamos na sala escura e éramos levados para um novo espaço. Estesia, catarse, sublimação, entregues à experiência. Agora, pausamos a dança.
Em duas dimensões, ganhamos acesso a repertórios e registros incríveis, alguns bastante desejados, e que nunca circularam dessa forma. Cheguei a obras de longe, reencontrei obras de muito tempo, descobri espetáculos que nunca pensei que veria, e revi alguns que não teria a chance de rever. E ainda assim, não da pra não reclamar. Não da pra evitar o sentimento de perda.
Tentei fazer a conta, a média de espetáculos que eu teria visto nesse período do ano, comparando de 2015 pra ca. Mas o sentimento é de uma perda muito maior do que umas 40 apresentações. O isolamento ensina a falta que faz estar na plateia.
Não que eu fosse extremamente sociável. Mas é o estar juntos durante que mais faz falta. Aquele silêncio carregado de respiração, apreensão e expectativa. O calor do aplauso do grupo.
Nas redes e nas conversas, da pra ver que os artistas sentem saudades do palco. Daqui de casa, eu sinto saudades da plateia. De me perder entre aquela (pequena) multidão. Eu, entre 40, 70, 139, 321, 819, 1118, 1523 pessoas. E todos os olhos voltados para o mesmo lugar.
É o nosso rito, a nossa cerimônia. É aquilo que não conseguimos reproduzir em casa. E que talvez demore um tanto para fazer de novo. Vamos buscando novos caminhos, outras formas de fazer. Dando cara de rito ao play. Tentando transformar assistir junto em um jeito de estar junto.
Saudades da dança, claro. Mas ela vai procurando, e tem encontrado alguns caminhos. Só que o sofá não consegue ser plateia…
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, e Professor Colaborador da ECA/USP. Editor dos sites da Quarta Parede, e Criticatividade.