Crédito das Fotos: Ela é puro êxtase, espetáculo do Cena 11
Entre os dias 23 e 27 de agosto de 2023 o MASP (Museu de Arte de São Paulo) sediou a 5ª Edição da Semana Paulista de Dança. Com curadoria de Anselmo Zolla, o evento contou com as apresentações de grandes companhias de dança do território nacional. Na noite de sábado do dia 26 o público pode entrar em êxtase com “Eu não sou em mim – estado de natureza – procedimento 01” do Grupo Cena 11, com concepção e direção de Alejandro Ahmed; criação e coreografia de Alejandro Ahmed, Aline Blasius, Ana Clara Pocai, Bibi Vieira, DG Fabulloso, Diego de los Campos, Gal Freire, João Peralta, Karin Serafin, Malu Rabelo, Natascha Zacheo, Vitor Hamamoto.
Parto do julgamento que é impossível falar de dança no Brasil sem citar o catarinense Grupo Cena 11. Ao decorrer dos seus 28 anos de trajetória causou e causa reverberações corpóreas, sensitivas e cognitivas por onde dança. Nomeado pelo Grupo como projeto “Eu não sou em mim – estado de natureza – procedimento 01”, a proposta de cunho teórico-prático tenciona separações entre os dispositivos sociais e tecnológicos e propõe o debate anarco-coreográfico acerca do conceito Povo Brasileiro[1] do antropólogo Darcy Ribeiro. Para o Grupo, este trabalho propõe a dança como tecnologia comportamental, com intuito de quebrar hierarquias entre linguagem e comportamento, colocam que identidade está sempre em fluxo e questionam o que poderia ser uma dança brasileira[2].
Infelizmente, na atualidade, não vem se tornando difícil encontrar obras coreográficas, performáticas onde a razão conceitual não consegue se sustentar na prática, ficando apenas no campo das ideias. Mas para a felicidade do público do dia 26 de agosto essa controvérsia não esteve presente no trabalho que fechou a noite. A pesquisa sustenta na prática a sua teoria. No jargão popular, “prometeu tudo e entregou”, e com muita responsabilidade estética.
O primeiro contato do público com a pesquisa inicia-se ao adentrar no auditório do MASP. Ao fundo do palco foi apresentado um vídeo que se assemelha aos Toca Disco de Vinil, composto por uma agulha ou objeto metálico que desliza por uma pedra, o som da fricção também foi compartilhado. A frente do palco, uma estrutura que aparenta ser a que está sendo projetada, foi perceptível uma espécie de fumaça que pode ter surgido do resultado da fricção do objeto metálico com a pedra. Após o terceiro sinal, os artistas começam a se presentificar, um a um, como uma contaminação que vai progredindo. A contaminação foi interpretada como um processo horizontal da interação do corpo com o ambiente (Bastos, 2014). As movimentações iniciais tinham como bases gestuais cotidianos que foram se contaminando com os dispositivos de câmera, vídeo e som. Ao canto esquerdo do palco, uma estrutura onde saiam os comandos da música e iluminação que sincronizadas com as movimentações se transformaram em outros moveres como em uma rave[3].
A festa rave emerge da contracultura dos anos 80 nos Estados Unidos da América e Reino Unido, em uma perspectiva freudiana, pode-se relacionar com os sonhos, onde se visa o escape do mal-estar que persegue cada existência, a fuga da rotina, projeta-se o sentimento anestesiador da liberdade que possibilita a realização mesmo que alucinatória dos desejos (Zago et al., 2011). Nas raves a relação espaço temporal se modifica, o tempo pode ser dilatado ou compendioso. Busca-se pelo êxtase, e para se alcançar esse estado as pessoas recorrem a recursos psicoativos como a música em batidas que provoca danças com movimentações que se repetem, estímulos visuais com grandes aparatos de luzes, e também o uso de alucinógenos como o ecstasy (Moreira, 2014). Neste escrito não foi efetivado o pensamento acerca do juízo de valor sobre o uso de substâncias alucinógenas e a questão não é abordada.
O êxtase provocado pelo Grupo Cena 11 está pautado no significado encontrado no dicionário Dicio, onde o êxtase é um estado emocional que causa intensificação dos sentimentos e afetos, que aqui foi relacionado como um estado corpóreo. A música, as movimentações que se repetiram até se transformarem. Durante a apresentação da pesquisa não foi diagnosticado o que provocou primeiro, a música estimulou o movimento, ou o movimento contaminou a música? As projeções visuais compartilhadas que eram fragmentos daqueles corpos em êxtase.
As movimentações e suas contaminações com a música, iluminação, câmera e projeções atingiram o patamar da união onde não houve fricções. Marcas registradas no Grupo como as quedas não chegaram na previsibilidade, fato consumado quando companhias e grupos têm em suas composições marcas pontuais em seus modos de moveres. As quedas também vieram da contaminação concebida no ambiente, pelas questões levantadas na pesquisa, que instaurou a rave no auditório do MASP onde todos os corpos presentes puderam experimentar o êxtase, fato atestado ao final da apresentação, o público eufórico aplaudiu majoritariamente em pé.
Citando de maneira sucinta o filósofo Gilles Deleuze, na conferência do ano de 1987 “O ato de criação”, ao colocar que o artista é aquele que consegue emergir o imersível, o artista traz à superfície aquilo que às vezes é inominável e o afeta, causa questionamentos. “Eu não sou em mim – estado de natureza – procedimento 01”, torna as questões apontadas pelo Grupo Cena 11 na pesquisa palatáveis. O que é o corpo brasileiro? O que o nosso corpo nos conta? Quais são as nossas cicatrizes? E quais cicatrizes provocamos em nossos semelhantes?
O auditório foi contaminado com movimentos vibráteis que emergiram de corpos em êxtase, a ambientação com luzes e som causaram a imersão do êxtase na platéia. Olhos atentos, corpos aptos a serem contaminados. Todas as pessoas, público e artistas, estavam na mesma rave. Utilizando o mesmo argumento de Frejat[4] quando questionado sobre a música “Puro êxtase”[5], para o artista é a visualização de uma mulher que quando dança hipnotiza, paralisa além da beleza e desperta os desejos. “Eu não sou em mim – estado de natureza – procedimento 01” provocou a “Vontade de dançar […]” o nosso corpo “[…] até o amanhecer”. O Grupo Cena 11 continua sendo puro êxtase, há quase três décadas, para a alegria da dança brasileira, que ainda pulsa pelos êxtases do nosso corpo.
REFERÊNCIAS
BASTOS, Maria Helena Franco de Araujo. Corpoestados: singularidades da cognição em dança. Revista Brasileira de Estudos da Presença. Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 138-147, jan./abr. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbep/a/zRC99FB4X5Q5NT6RTCRq3Zr/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 02/09/2023.
MOREIRA, N. A. Temporalidade nômade: raves psicodélicas. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília como requisito parcial para a obtenção do título de mestra em história. 2014. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/19419/1/2015_NathaliaAraujoMoreira.pdf. Acesso em 02/09/2023.
ZAGO, Maria Cristina; ILÁRIO, Enídio; TERZIS, Antonios Terzis. A FESTA RAVE E O MUNDO FANTASMÁTICO: UM ESTUDO PSICANALÍTICO. SPAGESP – Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo- Revista da SPAGESP, 2011. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rspagesp/v13n1/v13n1a03.pdf. Acesso em 01/09/2023.
[1] O livro “O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” de 1995 discorre sobre a formação cultural, étnica do povo brasileiro.
[2] Informações disponíveis em: https://www.cena11.com.br/. Acesso em 31/08/2023.
[3] Delírio [tradução livre].
[4] Disponível em: https://whiplash.net/materias/news_722/339255-baraovermelho.html. Acesso em 03/09/2023.
[5] Canção da banda brasileira “Barão Vermelho”, lançada em 1998. Composição de Guto Goffi e Maurício Barros.