Crédito das Fotos: Terraço do Estúdio Nova Dança
Por Valeria Cano Bravi[1]
Estúdio Nova Dança – Estúdio de Pesquisa e de Criação de Dança, localizado na Rua 13 de Maio, 240, 2º andar no Bixiga (Bairro Bela Vista/SP), existiu de 1995 a 2007 inicialmente idealizado e dirigido por Adriana Grechi, Lu Favoreto, Thelma Bonavita e Tica Lemos, e na ocasião contaram com a parceria de Cristiane Paoli Quito e posteriormente como sua sócia. O estúdio cumpriu um importante espaço de referência na produção da dança contemporânea paulistana pela sua proposta de ensino, pesquisa e criação atreladas à improvisação e às noções de autonomia e de processos colaborativos de criação.
Muito mais que oferecer aulas de dança e de teatro o Estúdio Nova Dança tornou-se centro irradiador de importantes projetos, surgiu como um canal de expressão de uma geração que procurou por meio de pequenas associações de iniciativa privada disseminar práticas e saberes inovadores para aquele momento. Sem políticas culturais que dessem conta de forma efetiva e eficaz das necessárias condições de produção artística, principalmente àquelas de parâmetros técnicos e de criação inovadores, o nascimento do Estúdio mostra-se como uma estratégia de agenciamento de projetos permanentes e facilitadores de todas as fases do sistema produtivo dessa nova dança emergente na década de 1990.
O Estúdio Nova Dança abriu suas atividades no mês de maio, mas literalmente festejou sua inauguração em outubro de 1995, tornou-se ponto de encontro das gerações que já vinham cavando na paisagem histórica paulistana novas trilhas para a dança cênica[2], inserindo-se na discussão em que emergem princípios que configurariam essa tendência estética nomeadamente dança contemporânea. Neste contexto paulistano de virada do século XX e início do século XXI, a militância artístico-política do Estúdio Nova Dança construiu suas próprias alternativas de trabalho unindo investigação artística e aprendizagem, embrenhou-se na valorização das pesquisas estética e de linguagem como princípio ativo da criação e na legitimação do termo intérprete criador. Incitou o ambiente de transformação das práticas e conhecimentos corporais, das funções hierárquicas no fazer peças coreográficas, e das reconfigurações do lugar em que acontecem as partilhas sensoriais.
Uma paisagem histórica em que uma visão política da relação arte e vida delineia um pensamento articulador de coletivos sob tratados de cooperação para conquistas de melhores condições de trabalho para as necessárias práticas corporais, as de criação e as de circulação de suas obras. Enquanto microcosmo social essas associações reverberam para além de propostas estético-culturais, relações políticas entre artistas e poder público. O Estúdio fez parte desses movimentos de artistas ativistas que alavancaram e deflagraram movimentos em prol de políticas culturais conquistando leis de incentivo e fomento à pesquisa de linguagem e circulação de obras coreográficas, quando a formação de núcleos ou grupos artísticos de trabalho contínuo, não só na dança, mas também no teatro ganham vigor e disseminam-se, gerando produções de maneira independente, isto é, fora dos modelos convencionais de companhias e da submissão a administrações governamentais.
O Estúdio Nova Dança torna-se referência de uma práxis artística que no contexto de criação e produção dessa dança contemporânea, o termo intérprete criador expande a noção de corporeidade abordando-a não somente enquanto prática poética, mas também como exercício democrático no sentido de experiência vivida no campo das relações de poder inscritas no corpo. Essa corporeidade tem como aporte técnico as abordagens somáticas às quais dizem respeito a uma filosofia do corpo que engloba o papel e a importância do movimento corporal para a qualidade de vida, a práticas e estudos terapêuticos, e a uma pedagogia crítica com o intuito de emancipação do indivíduo. Embora as técnicas somáticas reúnem um extenso leque de abordagens corporais com sistematizações muito próprias de saberes e aplicação, todas apoiam-se em conhecimentos da anatomia, fisiologia e cinesiologia humana e no não isolamento entre os domínios sensorial, cognitivo, afetivo, espiritual, psicomotor dos contextos socioculturais. No Estúdio, de acordo com a historiografia de suas fundadoras, ganharam destaque as abordagens da Ideokinesis, do Body Mind Centering (BMC), da Coordenação Motora – M.M. Béziers e S. Piret, e da Técnica Klauss Vianna. O Estúdio Nova Dança na construção de suas próprias alternativas trouxe como trabalho de base esse pensamento de corpo articulado às possibilidades expressivas sem submetê-las à sistemas pré-existentes e que restringem o potencial dramatúrgico do gesto dançante. Ao mesmo tempo, trabalhando em grupo, estrategicamente por meio de uma experiência pedagógica, fez gestar procedimentos de unificação de vocabulários de contornos estéticos singulares. Pela sua proposta de ensino, pesquisa e criação atreladas à improvisação e às noções de autonomia para assinalar as especificidades de funções que resultam na coautoria, articulam-se em processos colaborativos de criação artística.
O corpo do intérprete como um laboratório de percepções além de favorecer um potencial expressivo híbrido, propicia exercer as funções de compositor e de dramaturgista da linguagem coreográfica, promovendo autorias compartilhadas. Esse outro modo de produção instigou a uma desestabilização do organograma hierárquico piramidal convencionalmente ditado, sob o ponto de vista de microcosmo político não deixa de evidenciar os dilemas a que o exercício democrático implica nas relações sociais e políticas dessas novas atribuições. Ao ampliar as capacidades expressivas dos dançarinos, esse outro modo de produção arquitetou não só uma experiência artística e um saber, mas também uma investigação coletiva sobre o sujeito e a teatralidade, unindo investigação artística, pedagogia e encenação.
No Estúdio as ideias estéticas do corpo diferentes, num incessante trabalho transformador de preceitos foram deflagradas pelas singularidades das companhias que lá prosperam: Cia. Nova Dança e Cia 2 Nova Dança (ambas sob a orientação de Adriana Grechi); Cia. Nova Dança 4 (Cristiane Paoli Quito e Tica Lemos); Oito Nova Dança (Lu Favoreto); e os núcleos artísticos Cia. Nada Dança e Cia. Damas em Trânsito e os Bucaneiros. No período de existência do Estúdio as cias. receberam Prêmio APCA nos anos de 1999, 2001 e 2002.
O Estúdio oferecia um cardápio intenso de atividades, ensino, aprendizado, pesquisa, criação, elaboração, circulação, troca e fruição dessa nova dança: cursos regulares e workshops com artistas nacionais e internacionais; grupos de estudos e de pesquisas; atendimentos individuais com as práticas orientais e/ou somáticas; biblioteca e videoteca para consulta; mostras de vídeos; palestras; debates; lançamentos de livros e Cds; exposições; espaço acolhedor de projetos sociais; espaço para extensão de programações de eventos e festivais organizados por intuições como por exemplo, Itaú Cultural; sessões de Jams promovendo o exercício da improvisação coletiva com dança, teatro e música abertas a quem quisesse participar, realizadas no último sábado de cada mês. E ainda, para atender as fases de circulação, troca e fruição cênica, manteve por sete anos semanalmente as Terças de Dança que por sua vez fomentou a criação do departamento de luz comandado por André Boll, e posteriormente as Sextas na Tomada. Nesta lista é importante mencionar o Estúdio como espaço de encontros e discussões para mobilização em prol de políticas públicas, sua a cantina no terraço, ponto vibrante para rodas de intercâmbios e conspirações e as festas comemorativas de suas datas de aniversário, com Djs, performances, Mestre de Cerimônias que se tornaram referência cult das baladas paulistanas.
Com esse caráter efervescente cultural, cabe aqui um destaque ao projeto Terças de Dança na cobertura ao ar livre do edifício, que se tornou uma espécie de resistência contra a falta de circulação e escoamento para a produção de dança cênica que privilegiava a pesquisa em seu processo de criação. Além de criar um canal de apresentação para sua própria produção emergente, contribuiu para a formação de público, serviu de ponte para artistas independentes paulistanos e de outras cidades, acolheu artistas de diversas tendências, e profissionais de linguagens de outras áreas, garantindo a diversidade da programação. Dando visibilidade a segmentos culturais à margem do mundo comercial do espetáculo, sem compromisso com o ineditismo e grandes produções, promoveu um circuito alternativo das artes, transformando-se também em calendário semanal cult da cidade de São Paulo. O projeto Terças de Dança manteve-se de 1995 a 2002 e merecedor dos prêmios Mambembe/1995 e APCA/1996 (Associação Paulista de Críticos de Arte), chegou ao seu fim por falta de patrocínios e apoiadores, mesmo com seus insistentes projetos para as leis de incentivos e outros concursos. Posteriormente entre 2004 e 2006, para manter a oportunidade de apresentação de trabalhos artísticos, promoveu o Sexta na Tomada, um espaço mensal de programação.
A complexidade conjuntural desse projeto estético – cultural submetida a múltiplas atividades artísticas maior do que aquelas ligadas aos processos de ensino, pesquisa e de criação, e sem contar com verbas de apoio, a própria dinâmica interna fez vir à tona uma rede de colaboradores/bolsistas orquestrada no próprio estúdio, baseada nas relações de permutas em forma de aulas e participação nos grupos de estudos e pesquisas. Se por um lado essa estratégia serviu como alternativa para uma gestão de um espaço cultural, ao mesmo tempo, colaborou para que os bolsistas participassem de um conjunto de conhecimentos e habilidades específicas complementares à produção das artes cênicas, conteúdos de reflexão e de produção executiva das operações técnicas e administrativas necessárias.
Essa experiência vivida junto a trupe do Estúdio Nova Dança tornou-se referência para que novas gerações encontrassem um ambiente favorável a dar vazão à densidade da função de intérprete criador, na qual abre-se o caminho de perseguir seus próprios interesses em manejar as questões de operar processos de criação de maneira independente. Contudo nesta pluralidade é importante observar que persistem valores norteadores fundamentados em um fazer do corpo em movimento o seu sistema de referência, explorando-o enquanto matéria poética do ato criativo. Outro, refere-se à composição coreográfica a partir das dinâmicas dessa fisicalidade dançante em múltiplas relações com os elementos plásticos, sonoros, imagens virtuais e os lugares de apresentação, configurando-se em formas, conteúdos e formatos diversificados.
Em fevereiro de 2007, após 12 anos de incessantes e desgastantes trabalhos de administração de sua estrutura, manutenção das equipes colaborativas, da diversidade de atividades para além dos cursos regulares e das companhias, sem conseguir apoio para esse empreendimento cultural, suas sócias de então, Cristiane Paoli Quito, Lucilene Favoreto e Tica Lemos após análise e avaliação das condições materiais e mesmo de saúde, optaram pelo fechamento da sede do Bixiga. Contudo e não obstante, o Projeto Estúdio Nova Dança, continuou de maneira menos complexa, com a abertura de outros espaços pela cidade (e que hoje, por diferentes motivos se mantém apenas o Estúdio Oito Nova Dança) e a proliferação de novos coletivos de criação frutos dessa incubadora de danças autorais favoráveis à pesquisa em continuidade.
O Estudio Nova Dança assim como outras iniciativas de cooperação autônomas e independentes organizadas entre as décadas de 1990 e 2010, de alguma maneira demonstram que o impacto da globalização instigou a proliferação de identidades autorais e a recuperação de diferenças com a perspectiva de integrá-las num sistema mais amplo de práticas e situações sem eliminar as diversidades. Essas gerações de artistas da dança mostram um caráter contestatório e crítico propondo suas próprias alternativas de trabalho e que têm a especificidade como ingrediente pedagógico, estético e político.
[1] Valéria Cano Bravi pesquisadora, coreógrafa e professora universitária, é mestra em Artes Cênicas (ECA/USP), graduada em Ciências Sociais e pós graduada em Antropologia (FFLCH/USP), fez parte da equipe colaborativa do Estúdio Nova Dança desde sua criação, participou como redatora de projetos e relatórios de pesquisa das companhias Nova Dança e Cia 4 Nova Dança em suas primeiras premiações. Junto a Cia Oito Nova Dança dirigida por Lu Favoreto, participou de sua criação, na redação de projetos e relatórios de pesquisa, e nas funções de orientadora da pesquisa dramatúrgica e assistente de direção de 2000 a 2009. Integrante da equipe de colaboradores e apoiadores do estúdio, auxiliou na organização da biblioteca e videoteca, atuou no grupo de estudos Blá Blá Blá com discussões sobre história da dança e dramaturgia do corpo cênico, na organização de mostras de vídeo, e colabou na programação das Terças de Dança no período 2000 e 2002.
[2] Entre esses lugares “cavadores” aqui são pontuados: o Teatro Galpão (1975-78); nos anos 1980 a Escola Ruth Rachou, o Dança Espaço TBC sob o comando de Clarice Abumjara e o Espaço Viver Dança e Cia. fundado por José Maria de Carvalho; nos anos 1990 o Núcleo de Pesquisa em Dança Contemporânea – concebido por um coletivo de artistas autônomos – apoiado pela Oficina Cultural Oswald de Andrade (1990-91), e a criação em 1993 da CPBC – Cooperativa Paulista dos Bailarinos – Coreógrafos.