MURAL DA DANÇA

E dançar, lá é trabalho?

Imagem: Cibele Ribeiro. Imateria. SESC Campinas, 2018. Foto Fabiana Ribeiro | Domingo, 30 de Abril de 2023 | por Cibele Ribeiro |

Ouvi esses dias de um respeitado mestre de dança: “depois que aprendi a dançar, nunca mais trabalhei”. Do auge de seus 80 anos, o querido mestre se alegrava que vivia a vida em plenitude sendo apenas o que é: um bailarino. Na sua fala brincalhona, o mestre subverte na ironia o preconceito contra o artista da dança e os artistas em geral, de que fazer arte profissionalmente é, para alguns, um forte indício de ociosidade para não dizer coisa pior.

Dançar a vida toda e “ganhar a vida” com dança é o desejo de cada um de nós, artistas da dança. Mas a pergunta que instiga grande parte dos bailarinos e educadores de dança nos cursos profissionalizantes, técnicos ou graduações é: qual a perspectiva de trabalho do artista da dança?

Entre formação e experiência profissional um artista da dança utiliza boa parte do tempo da sua vida. Quem convive com esses seres já ouviu mais de uma vez a célebre frase: “Não posso, tenho ensaio”. Sim, uma frase já virou uma brincadeira no meio, mas nós sabemos que é a mais perfeita tradução de um cotidiano. Muitas vezes será sexta à noite, fim de semana ou feriado e essas fantásticas criaturas estarão ensaiando. E raramente serão pagos por isso, mesmo que já sejam profissionais. Outros estarão dando aulas. Outros fazendo aulas.

Fazer aulas, aprender métodos e técnicas para se aperfeiçoar, dedicar-se à preparação corporal, ensaiar, ensaiar, ensaiar mais uma vez e apresentar-se é a rotina cíclica de quem estuda, ensina e trabalha com dança. O profissional da dança, por vezes, passou por formações gratuitas de qualidade, mas é muito comum ele investir altos valores em formações profissionais que nem sempre trarão retorno financeiro imediato, se é que um dia trarão. O ensino sistematizado da dança sempre foi e ainda é bastante elitizado ou no mínimo, pouco acessível e diante de tantas agruras e crises econômicas o investimento em formação artística profissional passará para segundo, terceiro plano ou mesmo um plano adiado por muito tempo ou a vida inteira.

Ministrar aulas (no ensino forma ou não formal), cursos, oficinas de formação ainda é a grande fonte de renda da maior parte dos artistas. Especificidade dessa área de conhecimento, a transmissão oral, visual e preferencialmente presencial sempre foi e ainda é a principal forma de estudo dessa arte. As aulas, portanto, alicerçam orçamentos de muitos profissionais da dança e são importantes também para a contribuir com a formação de novos artistas e o aprofundamento de artistas já profissionais que precisam constantemente de manutenção de habilidades e fricção constante daquilo que fundamenta seus conhecimentos.

Além da importância do ensino, o artista da dança conta também, é claro, com o que há de melhor na vida profissional da dança para muitos: o momento de mostrar seu trabalho profissional, sua montagem, sua apresentação, performance e ou circulação de espetáculos. Sejam essas produções autorais ou de grandes companhias, mostrar um trabalho cênico é para o artista um momento não só de prazer, mas de construção de anos de empenho, estudo prático e teórico e pesquisa no corpo, na cena e fora dela.

Atravessados pelas mais diversas teias de relações sociais e econômicas e mergulhado na própria história pessoal, vivências, afetividade, desejos, paixões, ações, o dançarino concebe a si próprio. Convive de perto com sua própria constituição genética, anatômica e fisiológica, para reelaborar diariamente suas cinesiologia. Desse ponto de vista, a dança não é só profissão mas modo de vida.

Seja para pagar suas contas, financiar seus espetáculos, dar acesso às suas aulas ou mesmo proporcionar cuidados de saúde como fisioterapia que o corpo que dança exige sabemos, o valor de seu trabalho se liga à sua capacidade, mas também e principalmente, às oportunidades de reconhecimento profissional.

O mecenato público ou privado sempre foi e ainda é imprescindível para as artes. A arte precisa se materializar. O artista da dança precisa ser reconhecido enquanto profissional e sim, que a sociedade precisa reconhecer a dança como área de conhecimento e como profissão. Tudo isso é para nós fundamental que assim seja. Editais de fomento e de democratização da cultura como um direito do cidadão podem e devem propiciar que a criatividade dos artistas sua arte garanta sua existência e também a existência da obra de arte e a possibilidade da experiência estética. Coordenadores de escolas, de projetos e financiadores podem e devem reconhecer o valor do conhecimento do artista da dança nas questões do corpo e da educação somática que integra corpo e sujeito, da educação para o desenvolvimento de habilidades corporais e da possibilidade desses conhecimentos reverberarem ainda na saúde, conectando prevenção e recuperação de movimentos em pessoas afetadas por qualquer tipo de limitação física.

Dessa forma, exigir que a cultura - que gera uma grande fração do PIB nacional e muitos empregos de uma cadeia produtiva enorme - tenha aumento de investimento é no mínimo essencial para a economia de um país. Para que assim possamos estar mais próximos uns dos outros e conectados por experiências estéticas e aprendizados técnicos.  E gerenciar tal investimento de forma a fazer com que ele se espalhe por mais e mais produtores culturais/artistas até chegar a todos - absolutamente todos - aqueles que tenham um trabalho artístico considerável e propositivo deve ser um norteador de uma política pública co-criada junto com todos aqueles que se preocupam com as perspectivas de trabalho do artista da dança.

Imaterial e efêmera, a dança talvez seja a arte mais próxima daquilo que o escritor Paulo Leminski chamou de inutensílio, assim como “O amor. A amizade. O convívio. O jubilo do gol. A festa. A embriaguez. A poesia. A rebeldia. Os estados de graça. [...]. O orgasmo.” Coisas aparentemente inúteis mas sem as quais a nossa trajetória no mundo se tornaria difícil ou mesmo insustentável.


Referência bibliográfica:

LEMINSKI, P. A arte e outros inutensílios. Jornal Folha de S. Paulo, 1986.


*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.

Publicado por :



Cibele Ribeiro

Artista da dança independente



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