LABORATÓRIO DA DANÇA

Danças para semearmos na cidade

Imagem: Silvia Machado | Quinta, 07 de Junho de 2018 | por Ana Terra |


Em algum lugar de nós estão guardadas as experiências da infância, de uma época em que o movimento ocupava posição de destaque na mediação entre os “mundos” interno e externo, pessoal, interpessoal e social.

Relacionar-se com alguém pelo toque, pelo olhar, pelo ir e vir de sua presença. Mover-se pelo prazer de experimentar se mover, sem saber o que advirá. Lembra-se? Girar e girar até perder o controle, entrando em uma movimentação cambaleante e vertiginosa. E, de repente, alguém gritava “estátua”, desafiando-nos à total imobilidade. Andar de olhos fechados tateando o espaço ou tampar os ouvidos e correr, escutando os barulhos internos do corpo. A essas verdadeiras explorações sensoriais e motoras somam-se outras tantas memórias de como brincávamos, sozinhos ou acompanhados de outras pessoas, de seres inventados ou mesmo de objetos, em aventuras pelos espaços da casa, do bairro, da cidade em que morávamos. Era como navegar em fluxos contínuos, de intensa sinergia entre sensação, percepção, imaginação, pensamento, invenção, acontecimento, sentimento, apropriação e apoderamento.

Próprio às crianças, nas brincadeiras e nos jogos simbólicos esse continuum vem acompanhado de um estado de presença muito particular. Sabendo da sua importância, o grupo Lagartixa na Janela busca observá-lo em suas pesquisas junto ao universo da infância e instaurá-lo em suas criações e performances. Estar presente, sentindo-se conectado - corpo-mente, corpo-movimento, corpo-outro, corpo-ambiente - e investigando a plasticidade corporal e do movimento no espaço-tempo, é, simultaneamente, um desafio e um propósito estético de muitos artistas do corpo e da cena, conquistados por meio de um trabalho profundo que se apoia em técnicas e métodos de estudo, praticados sistematicamente.

Dançar pode ser uma forma muito especial de estar consigo, com o outro, em um coletivo. Em geral, não se fala muito enquanto se dança. Pode-se até não falar nada, pois é possível nos entregarmos a experiências primevas, pré-verbais. Aproximações, diálogos e conexões podem ser mediados por nossa sensorialidade, pela disponibilidade no e para o movimento dançante. Nesses momentos, é possível experimentar uma sensação de expansão de si, em direção ao outro, ao entorno, o que coincide com uma forma muito intensa e lúdica de estar junto e compartilhar a existência. Em outras palavras, uma experiência estética.

Na atualidade, uma parcela significativa de artistas no mundo dedica-se a pensar o sentido e, portanto, as formas de produzir obras, proposições ou dispositivos artísticos capazes de sensibilizar seus públicos – muitas vezes, coautores – à possibilidade de novas maneiras de viver e conviver socialmente, o que o filósofo francês Nicolas Bourriaud denomina “arte relacional[1].

Particularmente, nas últimas duas décadas de produção em dança contemporânea, observa-se a reconfiguração de um ideário poético-estético relacional responsável por uma intensa migração das pesquisas e das apresentações de obras de dança das salas de ensaio e dos teatros para outros espaços públicos e privados, coabitando com públicos em diversos contextos sociais das cidades. Conceituado como “dança contextual[2] ou também como “dança urbana[3], pesando aqui certas distinções, trata-se de um mesmo fenômeno que indica, entre outros, o desejo de a dança alcançar outras relações entre artista, obra e público.

Integrando essa corrente, o grupo Lagartixa na Janela tem se dedicado a dançar seus poemas cinéticos em espaços públicos da cidade de São Paulo. Cada uma de suas performances é um acontecimento singular, porque emerge de proposições poéticas, estéticas e artísticas que ganham vida nas relações entre as performers/dançarinas, as crianças (e também os adultos) e o espaço-tempo em que elas se corporificam.  


*Texto publicado originalmente do livreto "Mapa para Dançar em muitos lugares", organização de Uxa Xavier. Neste singelo e valioso material, figuram algumas dessas proposições, em forma de texto e de imagens, que nos convidam a estar, a contemplar, a experimentar, a imaginar, a inventar, a se aventurar (no acaso, no desconhecido, no inesperado), com o corpo em movimento, sozinho ou coletivamente, nos espaços públicos – ações fundamentais à infância, caras aos artistas do corpo e urgentes à saúde poética da sociedade contemporânea. Dançar nos espaços da cidade em que vivemos é uma afirmação sensível sobre a possibilidade de ocupá-la de outra forma; é uma semente de outra cidade-corpo que pode ser plantada.


[1] BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes , 2009 (Todas as Artes).

[2] ROYO, Victoria Pérez. A Bailar a La Calle: danza contemporánea, espacio publico y arquitectura. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 2008.

[3] ROPA, Eugenia Cassini; DE ANDRADE, Milton. A dança urbana ou sobre a resiliência do espírito da dança. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, v. 2, n. 19, 2012.

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Ana Terra

Artista da dança e professora-doutora



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