Da fidelidade à traição, um posicionamento delicado – Mesa redonda do Festival Montpellier Danse 2023

Montpellier Danse é um festival, que ao longo de sua trajetória, se dedicou constantemente ao equilíbrio entre novas criações e reprises de dispositivos notáveis na história da dança contemporânea. Assim, essa mesa redonda colocou em evidencia esse assunto, que foi também tema central dessa edição do festival.

Reunindo vozes de diferentes campos de produção em dança; bailarinos, pesquisadores, curadores, coreógrafos e ainda uma especialista em direitos autorais, a questão da “fidelidade” à obra original ganhou um prisma amplo de reflexão.

O que estimula um coreógrafo e as companhias a retomar obras antigas, e qual o grau de releitura esse processo implica?

O próprio movimento pode ser datado? Como ser “fiel” à escritura do movimento ou à intenção original do criador e fazer valer as reprises das obras de repertório em um contexto onde a criação é simbolicamente valorizada nas programações?

Considerando que o Festival Montpellier Danse programou recriações importantes nesse ano de 2023, essa partilha foi fundamental para melhor compreensão do que pode ficar invisível ao reapresentar/recriar uma obra que faz parte da memória da dança.

A coordenadora da mesa Laura Cappelle, que é pesquisadora e jornalista, inaugura a mesa perguntando à bailarina Anne Martin, que foi, durante alguns anos, a principal solista da companhia Tanztheater Wuppertal de Pina Bausch, como a coreógrafa via essa questão da reprise. Anne conta que uma das primeiras estratégias colocadas por Pina para as reprises era a de procurar novos bailarinos que poderiam substituir os antigos considerando o biotipo físico e a qualidade do movimento.

Mas como manter vivo o papel? mesmo que exista o recurso do vídeo como registro, a questão da experiência é apontada por quase todos os membros da mesa como algo que o vídeo não dá conta e o quanto isso exige um trabalho profundo de imersão no papel e não só na reprodução da célula coreográfica.

Boris Charmatz, que não foi intérprete de Pina Bausch, mas que desde 2022 assumiu a direção artística da companhia, joga luz a esse tema dizendo o quanto estamos acostumados em peças de dança clássica ver grandes estrelas refazer, por exemplo, “Giselle” e identificar a interpretação específica de cada solista, e o quanto na dança contemporânea isso ainda é um terreno a explorar. Aponta ainda que na música há o hábito da reprise de maneira mais integrada dando o exemplo de quantas versões da “Sagração da Primavera”  já ouvimos e traz o contraponto de o quanto na dança ainda há um grande questionamento com relação à fidelidade para tal propósito. Nessa perspectiva, Charmatz defende que tem algo da essência da obra que deve ser mantido, mas que há alguns aspectos que devem se transformar para que a criação possa atravessar a história da dança através dos tempos.

Laura Cappele amarra essa questão com Pina Bausch, lembrando que a coreógrafa batizava suas criações como uma sinfonia, assim, um clarinete será sempre um clarinete e é importante no todo.

Para Brigitte Lefreve, diretora da Ópera de Paris e pesquisadora das obras de Pina, é uma felicidade ver as peças da coreógrafa serem reapresentadas e enfatiza que ajuda os pesquisadores de dança a vivenciarem e acompanharem a história da dança. Levanta a questão do  por que a noção de tradição contém a noção de traição e não de construção da história da dança? Qual o perímetro, o limite da reprise? Talvez especificar no programa da peça o que precisou ser transformado da obra original, pode ser uma caminho para colaborar na reconfiguração da obra e estabelecer um protocolo de trabalho.

Presente na mesa, Taoufiq Izeddiou, coreógrafo e bailarino marroquino, conta que para ele essa questão é bem diferente, uma vez que repassar e manter viva as tradições artísticas é algo já instaurado em sua cultura.

Mathilde Monnier, para a reprise de suas criações, acredita que seria um erro procurar as características dos  novos intérpretes como as dos intérpretes de origem. Para  ela, a questão da traição já está no núcleo da essência da reprise. Sua inquietação se concentra mais sobre o que mantemos numa reprise? A coreógrafa recorre a fotos, vídeos , textos, mas sobretudo sobre a musicalidade e sobre a compreensão do tempo onde a peça foi criada como pista para constituir a reapresentação.

Fabrice Ramalingom, coreógrafo e ex-dançarino de Dominique Bagouet conta quais eram as ferramentas para a reprise e para manter alguma fidelidade nas peças de Bagouet. Fabrice traz a questão de como atualizar o corpo no momento em que a peça está sendo refeita, por exemplo, ao longo dos anos, notou-se que as bacias começaram a se posteriorizar um pouco mais nos corpos. Para ele a essência da peça é a dimensão do tempo e do espaço e não só da técnica. Assim conta que havia um trabalho na companhia de Bagouet que o ponto de partida para a reprise de tal peça era trabalhar o peso da bacia um pouco mais para a parte detrás do corpo.

Brigitte Lefreve complementa a fala de Fabrice dizendo que nós não traímos e sim evoluímos com as reprises.

O último momento da mesa foi dedicado para refletir sobre os direitos autorais da obra e mais especificamente qual lugar o esse último ocupa na memória, no patrimônio e na cultura. O que deve ser considerado desse ponto de vista para a preservação da criação original? Qual seria o conceito de originalidade ? Daquilo que preserva a personalidade, a criatividade e a sensibilidade do autor?

Após a leitura de algumas diretrizes da lei, a especialista presente na mesa explica que o direito “moral” do autor é o elemento mais considerado. Se a reprise não está sendo usada para outros fins que não a preservação (por exemplo pela comercialização de algum  produto) deslocando a obra de contexto. Explica ainda que quando a reprise é feita pelo próprio criador o direito não é aplicável porque ele tem o direito de mudar e recriar sua própria obra. Quando o autor ainda é vivo, conta muito se ele autoriza a reprise da sua obra, caso isso seja feito por outros coreógrafos ou companhias.

Considerando que essa edição do festival acolheu reprises marcantes dentro da história da dança, esse tempo de partilha foi extremamente rico para melhor compreensão do que se esconde por trás da dificuldade de manter viva a memória da dança.

Site festival: www.montpellierdanse.com

Carmen Morais

Carmen Morais

Ver Perfil

É artista da dança, arquiteta e instrutora de yoga. Mestre em Dança pela Universidade Paris 8 com a pesquisa sobre a dança in situ/ site specific no espaço urbano. É idealizadora e diretora do “Núcleo Aqui Mesmo” que apresenta como eixo principal a pesquisa sobre arte e espaço urbano, mais precisamente sobre a questão da espacialidade em dança dentro de propostas in situ/ site specific tem como objetivo viabilizar projetos em dança in situ estabelecendo parcerias com artistas da dança e de outras linguagens artísticas, como arquitetura, fotografia e vídeo. O Núcleo tem viabilizado a criação de suas performances através de diversos prêmios e editais tais como: Funarte, ProAC e Fomento à Dança de São Paulo. Em 2015 publicou o livro  A dança in situ no espaço urbano e organizou, junto com Ana Terra,  a publicação Situ (ações) – caderno de reflexões sobre a dança in situ . Ambas publicações foram realizadas através do Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna (2013) pela editora Lince. Nos últimos anos, tem seguido sua pesquisa artística munida de um profundo interesse pela interação entre arte da dança, ambiente/natureza e cura. Mais infos: www.nucleoaquimesmo.com | www.instagram.com/nucleoaquimesmo | www.instagram.com/umacarmen