MUSEU DA DANÇA

Confluir: quando a dança e o rio encontram a palavra

Terça, 28 de Março de 2023 | por Luciana Bortoletto |

Por Luciana Bortoletto e Elder Sereni


O projeto Deságua (…AVOA! Núcleo Artístico), propõe a criação coreográfica de uma obra solo de Luciana Bortoletto em contexto urbano, à margem de três rios: M’Boy-Mirim, no município de Embu das Artes; Pirajussara, no município de São Paulo e Turvo, no município de Bebedouro e distrito de Turvínia, com uma perspectiva autobiográfica e coletando memórias das comunidades locais; envolvem a realização de de inventários participativos, caminhadas, registros audiovisuais e coletas. Elder Sereni atua na função de dramaturgista e provocador.

Em parceria com o Portal MUD, são publicados textos e diários de bordo sobre experiências vividas em cada território. Desta vez, Elder (E) e Luciana (L) estabelecem um diálogo que joga com a memória e a imaginação de ambos, caminhando por temas relacionados ao centro histórico de Embu das Artes, uma das áreas atravessadas pelo rio M’Boy-Mirim. Juntos, “passeiam” por questões como corpo, processo criativo, afeto, memória, dança, território e História, em uma trama de relações instigantes para pesquisa coreográfica e poética de Deságua.


E. Era 9:00 da manhã, eu subia a rampa para chegar na pracinha, foi quando vi você e Marcel Moreno[1] em minha direção. Agora me pergunto: Embu tem morro antes ou depois do rio?

L. De acordo com o Marcel, Embu leva esse nome também por causa de sua topografia[2]... São muitos morros e rios sinuosos e a depender do ponto de vista, a paisagem muda.

E. Os afetos também, me lembro que você me abraçou, neste instante fui transportado para nosso último ensaio no centro de São Paulo. Talvez o corpo seja este vórtice de memória não linear e, quando iniciamos um processo criativo, nos lançamos no ontem a partir do agora, cultivando futuros desejáveis e dançantes.

L. Sim!! Foi um pequeno salto no tempo-espaço entre o Palacete Tereza[3] e o Rio M’Boy! Que lindo. O centro histórico do Embu revela uma semelhança com o centro histórico de São Paulo, no que diz respeito à História e aos rios. Ao mesmo tempo, para mim a grande diferença é que no Embu eu ainda consigo ver os rios e suas margens, que ficam visíveis em meio ao espaço urbano. Isso provoca no corpo uma experiência mais direta; é a presença deles no cotidiano vivido… Um pouco chocante! Sentir o cheiro da vegetação e das águas, avistar animais silvestres perto dos pontos de ônibus… Em São Paulo, quando passamos pelo centro, dá para imaginar o passado: embaixo da Rua 25 de Março e do Vale do Anhangabaú tem os rios Tamanduateí e Anhangabaú… Mas só conseguimos ver as ruas. Os rios estão soterrados… E o corpo sente tudo isso de um jeito sutil ou não, a depender da relação que temos com cada lugar, né?

E. Sim, são paralelos que inevitavelmente faremos, pois penso que quando imersos em um processo criativo, ativamos nossa memória referencial sobre as pesquisas anteriores, sendo que o centro de São Paulo marcou a trajetória do Avoa pois foi o território em que você desenvolveu grande parte dos procedimentos e propostas de pesquisa em dança. Penso que nossas memórias se justapõem com a experiência em um novo território, assim compondo uma topografia afetiva que fica entre a memória e o real. O que é fato é que os costumes permanecem…Digo isso porque no Embu também nos sentamos à mesa de um dos bares e pedimos uma média com um pão na chapa, como fizemos tantas vezes no centro de São Paulo!

L. Ah, verdade!! Pedir um pão na chapa na padaria virou ritual após ensaiar!! Alguns hábitos desenvolvidos a partir dos processos de criação em São Paulo estão presentes no Embu, como esse de pararmos em uma padoca para conversar após ensaiar na rua. Isso me coloca a pensar e observar o modo como nos organizamos diante do que é novo, ou melhor, específico desse território onde estamos imersos agora. Mesmo buscando conforto nos hábitos e rituais já instaurados, acho interessante que essas memórias também nos convocam a criar caminhos diferentes que sejam coerentes com o momento atual. O conhecido abrindo espaço para o novo!

E. É como se ao caminhar pelo mesmo percurso, o diferente se faz presente, portanto, o que era “comum” contrasta com o “atual”. Assim percebo que no centro de São Paulo, você passa, acena e conversa com uma enorme população que para você é reconhecida e, no Embu, que é muito menor e onde você mora atualmente, esta prática das relações com o território é distinta. Como você sente essa diferença em seu corpo?

L. Ah, Elder, eu-corpo me sinto tateando outras relações, pois estou me aproximando do Embu aos poucos e conhecendo a cidade enquanto caminho e converso com as pessoas. Me dá muita vontade de dançar, coletar e colecionar o que encontro nos caminhos… É uma dança que se dilui no cotidiano. Mas observo os gestos que surgem, assim como os impulsos. Os rios me inspiram muito… Não é tão diferente de como foi no centro de São Paulo. Mas em SP, ficamos de 2007 até o início da pandemia, em 2021, trabalhando e criando no centro histórico, conhecendo a história das ruas e dos rios, também! Os vínculos afetivos com o território se tornaram muito fortes!... Tantas experiências… Amo essa ideia de conhecer um lugar no ato de caminhar pelo processo e pelas ruas! Esse caminhar nos leva a perceber como a cidade é por dentro, memórias antigas e recentes criam leituras de mundo… Isso acontece no percurso.

E. Sim, concordo. Agora que falou dos/as moradores/as, percebo que quem acena para as pessoas no Embu, é o Marcel, é no aceno dele, na palavra dele e na entonação dele que mora um território para além do que estamos vendo. A partir dos inventários participativos[4] que estamos realizando, das histórias e costumes das pessoas, emerge uma  rede de valor histórico cultural dos rios.

L. Marcel! Aliás, ele está por aqui! Presença forte! Sim, essa rede de valor histórico-cultural dos rios é a chave para o Deságua. Bem importante trazer esse ponto para esta conversa. Existe uma perspectiva museológica que diz “quem atribui valor às coisas são as pessoas”. Quando nos permitimos escutar o que as pessoas têm a dizer sobre a cidade, os rios e como se sentem atualmente diante de alterações da paisagem devido às questões socioambientais, surgem outras possibilidades de percepção e invenção no território. O lugar que habitamos também organiza nossos corpos e sensibilidades. Os inventários participativos nos dão respostas mais objetivas sobre como algumas pessoas vivem a cidade e a sentem.

E. Você falando isso, me faz pensar que o fato de estarmos friccionando o campo da museologia social junto ao da dança, proporciona outras camadas de compreensão sobre memória e território, uma vez que na dança estamos interessados/as com o movimento e o corpo in situ, deste modo, quando falamos do Marcel, não falamos somente de suas memórias e de suas relações, mas de como suas memórias são o seu corpo e as relações se dão na imediata presença entre os corpos. Eu até mudaria de “história oral” para “história corpóreo vocal”, mas isso é só uma provocação para a museologia.

L.  Falando em museologia, vale lembrar que o Museu de Arte Sacra na Igreja dos Jesuítas fica ali em silêncio… Ah, Élder, olha o Marcel ali chegando pela Rua Padre Belchior de Pontes! Soube que o padre provavelmente chegou pelo rio, navegando para estas bandas…de tanto que achou bom ficar, virou nome de rua.  Mas, quem dá o nome para as ruas?... O Marcel pode contar melhor essa história!...


[1]  Marcel Moreno é historiador, músico, pesquisador e ativista cultural. Natural de Embu das Artes, é habitante da cidade e atualmente integra o projeto Deságua do …AVOA! Núcleo Artístico, contemplado pelo PROAC Dança nº 03/ 2022, contribuindo com pesquisas sobre a história primitiva da cidade e questões relativas a patrimônio cultural e ambiental. 

[2] M’Boy, segundo o historiador Leonardo Arroyo, tem origem em Mbeîu, lugar com penhasco ou “cousa penhascosa”, agrupamento de montes. Outra versão para a origem da cidade de Embu, é de M’Boy, que em tupi guarani significa Rio das Cobras. 

[3] O Palacete Tereza Toledo Lara é um edifício tombado, ou seja, é considerado um bem cultural material, que está localizado na esquina musical da cidade de SP e sedia três espaços: o Aqui, Ali Dança e Cultura, Casa Amadeus e Casa de Francisca. Está localizado na Rua Quintino Bocaiúva, 22, perto do Pateo do Colégio. Sob o palacete há uma nascente! De 2017 a 2021  o …AVOA! recebeu o apoio do espaço Aqui, Ali  para realização de projetos e aulas, envolvendo ensaios e criações em dança durante esse período, interrompido durante a pandemia.

[4] Inventários participativos são “ferramentas de Educação Patrimonial que visam o protagonismo das comunidades locais na identificação e seleção de suas referências culturais, como um exercício de cidadania e participação social.” Fonte: https://publica.ciar.ufg.br/ebooks/patrimonios-possiveis/05_sonia_rampim.html#:~:text=Os%20invent%C3%A1rios%20participativos%20s%C3%A3o%2C%20nesta,de%20cidadania%20e%20participa%C3%A7%C3%A3o%20social.

Publicado por :



Luciana Bortoletto

Pesquisadora, educadora somática e coreógrafa



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