No mês dedicado às mulheres, nada mais justo e político que propor reflexões sobre nós, nosso lugar no mundo e o papel que a sociedade nos predestina ao nascermos. Apesar de entender e defender que as pautas feministas deveriam e precisam estar em debate o ano todo, dado que, além de serem uma luta sobre os nossos direitos é também uma forma de resistência para nos manter vivas.
Ao longo do meu trabalho como professora no sistema prisional considero que o presídio/penitenciária/casa de detenção são locais onde as relações que permeiam a sociedade livre ganham dimensões acentuadas. Ao propor o recorte das mulheres em privação de liberdade identifico que toda a violência e incumbências que mulheres livres enfrentam em seu dia a dia no contexto da prisão tornam-se robustas. No cotidiano, ataques vistos por olhos inocentes construídos em uma sociedade machista ou apenas que não querem ver, que por sua vez fora dos muros da prisão podem passar despercebidos, todavia lá dentro são escancarados.
O viver da mulher no cárcere diverge da vida do homem privado de liberdade. Por exemplo, os solteiros se valem da mãe, avó, uma tia, irmã. Ao mencionarem suas vidas particulares a impressão que me causavam era a de que para eles as suas companheiras não faziam mais do que a obrigação de visitá-los e manter a relação afetiva, “[…] prometo ser fiel, amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias de nossa vida até que a morte nos separe.”[1] Juramento que na maioria das vezes é cumprido apenas por um lado.
Na prisão as mulheres mencionam seus parceiros e encontram justificativas para seu abandono “Ah, professora, ele mora longe, fica caro e difícil ficar vindo”, quando a mesma já cruzou cidades e até estados, pernoitou em filhas para passar algumas horas com seu amado que se encontrava na mesma situação. Homens, em sua maioria, não fazem isso, homens não passam por essas situações. Eles têm sua vida para cuidar, suas prioridades, que não são nem de longe um relacionamento, apoio emocional, com uma mulher encarcerada.
A mulher na prisão sofre além da privação da liberdade e outras questões que não abordarei nesse texto o abandono de seus familiares, amores, amigos. Não é incomum situações onde os familiares enfrentam longas distâncias para verem os maridos, namorados, amantes, filhos, sobrinhos, irmãos privados de liberdades, mas não visitam as mulheres de sua família que estão na mesma condição.
O médico e escritor Drauzio Varella, em seu livro “Prisioneiras” (2017), menciona em um dos capítulos a história de uma encarcerada. Com o irmão também encarcerado e que segundo ela pagou por um descuido do mesmo, não recebia visitas regulares da mãe, pois ela visitava o filho em outra instituição prisional. Mesmo a filha ao longo de sua vida ter se valido de uma conduta exemplar, e que estava naquela situação por um descuido do irmão, ao ser indagada a resposta da mãe foi a de que a filha tinha responsabilidade, conseguiria se cuidar, o filho não. Erros de homens são romantizados e perdoados, os de mulheres não, na melhor das hipóteses são interpretadas como pessoas que têm força para encarar qualquer situação, em determinadas circunstâncias o perdão nunca lhes será consentido.
Mulheres se autopunem com a solidão, as ouvi infinitas vezes que não querem as pessoas próximas dentro do ambiente da prisão, é verdade que já ouvi isso de alguns homens, mas quando mencionam seus filhos, a esposa, namorada e até amante, essas precisam estar lá. Posso até cometer um erro, mas nenhum deles mencionou que não gostaria de ver sua conjugue na prisão.
Sem liberdade e condenadas à solidão, seus corpos carregam o peso da cobrança de deixarem seus filhos aos cuidados de familiares ou desconhecidos. Não afirmo que os homens não tenham essa preocupação, porém a eles lhe é resguardado a segurança de que a mãe ou alguma figura feminina de confiança irá cuidar dos seus, para as mulheres essa segurança do pai que estará presente não existe na maioria dos casos.
Mas afinal, o que pode a dança nesse contexto, neste pequeno recorte de várias outras questões que acometem a mulher privada de liberdade? É no corpo que os afetos são guardados e canalizados, somente a partir dele que o reflorescer toma vida, consequentemente podemos devanear outras possibilidades de se amar a partir de sua própria casa: o corpo. Defendo e acredito que o sistema prisional imprime marcas nos corpos das pessoas que sobreviveram ao sistema mais perverso de dominação de corpos e sujeitos, mas entendo que nós, seres humanos, estamos em constante transformação, e estabelecer uma relação amistosa com a nossa morada é amar a nossa vida, é ter esperança no futuro. O que projetamos no corpo é o que acreditamos para o nosso destino. É ter a dança como um meio para a liberdade de corpos presos e como protesto político, só produz movimento quem está vivo e ao visar a possibilidade de que essas mulheres se afastem do estado de solidão que as persegue.
[1] Disponível em:
REFERÊNCIAS
VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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