Vamos falar de dança contemporânea?

Tu faz dança? Que legal! Mas que tipo de dança?

– Dança contemporânea.

O sujeito fica parado e depois de vencer o constrangimento:

– Mas o que é essa tal de dança contemporânea?

Daí o vivente, que faz dança contemporânea e sabe bem o que faz, se vê em apuros para dar uma resposta clara. Afinal, dança contemporânea não é uma técnica ou método que vem com rótulo. Então, ele arrisca:

– Sabe o Quasar Cia. de Dança? – que o vivente acha referência no país e crê ser bastante conhecida.

O sujeito permanece na mesma. 


– E o Grupo Corpo? – ele lembra, já entrando em desespero. – E Deborah Colker? – ainda que não fosse o melhor exemplo que você quisesse dar.

– Ah, já vi na televisão, responde o sujeito finalmente com um brilho no olhar de quem agora pode encerrar a conversa.

E o vivente, com a certeza de que não conseguiu explicar e que melhor que explicar era sugerir que assistisse a um espetáculo.

O diálogo acima foi retirado do texto de Airton Tomazzoni, intitulado Essa tal dança contemporânea (digestivo cultural, 2014), mas poderia ter saído qualquer conversa recorrente para quem trabalha com dança. Esse tal fazer contemporâneo parece muitas vezes estar em um certo lugar de distanciamento no que tange à coleção de informações da maior parte das pessoas, mesmo que exista na linguagem algo de tamanha potência como ponto de partida para a construção artística, que é o próprio corpo. 

Quando falamos em dança estamos falando de um vocabulário específico, e de um modo de produção em que além de sua memória histórica, diz respeito também ao contexto atual em que os corpos que dançam estão inseridos. Este contexto pode ser referendado como um sistema com características particulares que, no entanto, não se restringe a uma existência apartada. Isso porque em alguns casos a arte é pensada como algo a ser apreciado por um determinado grupo ou como algo que pressupõe um conhecimento anterior. Apesar de sua abrangência e permeabilidade, no que diz respeito à proposição de reflexões sobre os mais diferentes assuntos, a dança contemporânea ainda é pouco disseminada e não tem grande reverberação no público brasileiro. 

A cultura de massa está intrinsecamente associada ao advento da modernidade. No século XIX, a ideia foi utilizada para fazer antagonismo entre a educação recebida pelas massas à educação recebida pelas elites, passando, anos mais tarde, a existir como modo de designar também o consumo de alguns bens e serviços da sociedade industrializada. A exemplo disso temos a televisão, que atualmente segue como grande representante deste tipo de manifestação, ainda que tenhamos novas mídias despontando e acelerando ainda mais a velocidade da comunicação mundial. Inspirados neste universo, os artistas Adriana Macul, Daniela Dini e Rogério Salatini apresentam BDT – DANCE TELEVISION “uma instalação/performance artística pop que mescla documentação e ficção” – trecho retirado do próprio programa do trabalho, ora apresentado na programação Modos de Existir: dançando com artistas-etc, realizado pelo Sesc Santo Amaro. 

Este encontro artístico é algo recente e aponta para aspectos comuns entre os três profissionais que possuem carreiras e projetos distintos. Adriana Macul atua na fronteira entre linguagens do corpo, imagem e espaço urbano. Daniela Dini, por sua vez, é performer interessada pela transculturalidade, e tem buscado a interface com outras linguagens como as artes visuais e a videoarte como mote de suas criações. Já Rogério Salatini é artista, produtor cultural e pesquisador de linguagens multimídia, estando inclinado ao estudo do hibridismo e do sentido dos movimentos de expansão das linguagens artísticas – exemplo disso é a Mostra Hiper_arte de Convergências dirigida por ele. 

Criada dentro contexto da Bienal de Dança do Sesc, a primeira apresentação pública de BDT, que possuía um caráter de “cobertura” do evento realizado no ano passado, na cidade de Campinas, nos leva a uma questão: como dar continuidade ao desenvolvimento de um trabalho, que nasceu como site-specific, em uma nova conjuntura? 

Dentro do Modos de Existir, o público teve a oportunidade de estar em contato com dois formatos distintos do BDT. Em um deles, Daniela Dini e Adriana Macul entrevistavam artistas convidadas, numa proposta que remetia a algo como “Saia Justa”, programa exibido no canal GNT, com debates feitos por mulheres sobre questões amplas que, aqui giraram em torno do “ser artista mulher” na sociedade atual. O outro formato, por sua vez, trouxe à cena uma espécie de game cênico, algo como um “passa ou repassa” de dança, que nos desloca para competições televisivas dos anos 90. Se o primeiro formato traz uma roda de conversa, onde o que protagoniza é o debate em questão, os assuntos que tanto poderiam ser refletidos ali naquele formato de set de filmagem, como em um auditório ou sala de aula, mas nesse caso com uma dinâmica um pouco mais instigante, o segundo traz tudo isso com uma potência e versatilidade muito mais interessante, por onde se faz possível em pensar no BDT não apenas como um trabalho sobre dança, mas como um trabalho de dança.

A apresentação é fundamentada na fisicalidade na memória e na história da dança, de modo que os convidados que vão respondendo às perguntas feitas pela “apresentadora” e pela “assistente de palco”, vão construindo uma dramaturgia que associa o movimento dos corpos, o contexto teórico e, claro, a presença do público. Neste último ponto talvez estejam os principais desafios para o fortalecimento da performance, isto é, a apropriação e aprofundamento do meio televisivo, e a relação da construção deste universo com o público presente. Dos trabalhos apresentados no Modos de ExistirBDT, provavelmente foi o que teve a maior presença de público espontâneo, uma vez que o set fora estrategicamente montado no hall de entrada do SESC Santo Amaro, em frente à comedoria, por onde passam todos os frequentadores. Muito curiosos paravam; alguns seguiam caminhando, alguns ficavam até o final. Nesta participação escutaram brevemente citações sobre nomes como Anne Teresa de Keersmaeker, Isadora Duncan, Xavier Le Roy, Cristian Duarte, Eduardo Fukushima, etc, respostas sobre fatos históricos da dança e imitações de coreografias feitas pelos artistas convidados Wenderson Godoi e (Princesa) Ricardo Marinelli, o que nos provoca a pensar sobre o limiar entre a informação que chega ao público geral e códigos que se restringem ao público mais frequente e especializado da dança. 

Essa ideia de refletir sobre dança com o público não é inédita na cena contemporânea da dança. Na realidade, diferentes caminhos que despontam da metalinguagem, têm atravessado repertórios de diferentes artistas. Os exemplos vão desde a coreografia “HOT 100”, de Cristian Duarte, que evoca um solo caleidoscópico a partir do repertório de espetáculos de diferentes artistas e momentos da dança, passando por “Isabel Torres”, na qual a artista Isabel Torres traz para a cena uma rubrica confessional, conversando com seus espectadores sobe o fazer da dança, a partir de provocação do coreógrafo francês Jérôme Bel. E mesmo o trabalho “Discoreografia – Música, Dança e Blá-Blá-Blá”, de Denise Stutz, que trabalha com o invisível e o torna palpável por meio de depoimentos, de memórias e conversas sobre dança, como um programa de rádio. Cada uma com suas diferentes poéticas, as obras aproximam o público e possuem naturezas complexas de mediação. 

Como obra que deve se constituir em diferentes contextos futuros, BDT – DANCE TELEVISION, parece ter uma importante missão, associada à mediação. O aprofundamento do uso de conceitos de dança e as referências a obras artísticas, a informalidade de sua linguagem e a escolha estrutural podem trazer grande ganhos para que o público conheça e se interesse cada vez mais pela dança e pela arte contemporânea. Quem sabe daqui algum tempo quando alguém perguntar: “você trabalha com o quê”, e a resposta que vier for: “trabalho com dança contemporânea”, o primeiro sujeito apenas dê continuidade à conversa, citando inclusive a última apresentação à qual assistiu. 


*Este texto foi escrito a partir do Workshop Crítica-ETC, ministrado pelo crítico e jornalista Carlinhos Santos. Carlinhos é Mestre em Educação e especialista em Corpo e Cultura – Ensino e Educação, pela Universidade de Caxias do Sul. A atividade integrou a programação do evento Modos de Existir // Módulo 8: Dançando com Artistas-etc, realizado no SESC Santo Amaro entre os dias 23 e 25 de Agosto, com curadoria de Cláudia Muller e Marcos Villas Boas.

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Marcus Moreno

Marcus Moreno

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Formado em Comunicação das Artes do Corpo, tem especialização em Técnica Klauss Vianna pela (PUC-SP), e licenciatura pela Universidade Anhembi Morumbi. Em 2013 criou o solo A Imagem como Ausência (Proac), orientado por Key Sawao, que também colaborou nos trabalhos seguintes, A Flor da Lua (2016), e Estudo para o Encontro (Proac/2017), concebidos em Residência Artística na Casa das Caldeiras (SP). No campo da gestão cultural, coordenou o Programa de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo (2013-2016), fez parte da implantação do projeto do Centro de Referência da Dança (CRDSP), integrou a equipe de curadoria do Circuito Municipal de Cultura e participou da Comissão de seleção do Programa VAI. Representou a Secretaria Municipal de Cultura em eventos internacionais e foi um dos responsáveis pela coordenação do Encontro Latinoamericano de Gestores de Dança: Mobilidade, Identidades e Estratégias de Cooperação (2016).  Atualmente integra a equipe de programação das Oficinas Culturais do Estado, programa gerido pela Poiesis – Organização Social de Cultura. Tem interesse em práticas orientais, improvisação cênica e estudos somáticos.