Crédito das Fotos: Patricia Araujo
Em 1966 Yvone Rainner, com a obra Trio A (The Mind is a Muscle), para alguns, propôs a corporalidade como sujeito e objeto da expressão do corpo em cena, o que teria inaugurado um novo momento para a dança, em uma das versões de sua história no ocidente – que até recentemente era o único tipo de dança chamado “dança contemporânea” em muitos nichos das danças feitas no Brasil.
Hoje, cada vez mais, fica evidente a necessidade e a clareza de entendermos o tempo histórico, na dança e/ou na cultura, de forma geral, a partir de uma multiplicidade, que nos leve a perceber a pluralidade de “histórias da dança”, e, para fins de reconhecer a legitimidade de outras formas de fazer dança, deslocar o olhar e os paradigmas. Mas longe de discutir historiografias ou sociologias da dança, faz-se aqui esta ressalva apenas para fins de evitar a reafirmação de uma única “história da dança” como legítima de ser assim classificada.
Neste texto, faz-se importante a citação feita quanto à operação poética lida no trabalho de Rainner por, por exemplo, Julia Bryan-Wilson, professora de Berkeley, para quem a flexibilidade que ressalta Trio A “pode ser entendida como um exemplo do que Rosalind Krauss nomeou de ‘condição pós-mídia’ nas artes contemporâneas”, uma superação de paradigmas do suporte em artes que permitiu expandir e diluir fronteiras e limites entre campos de linguagem.
Esta ‘introdução’ abre caminho para então empreender um olhar sobre a peça Força Estranha, de Clarice Lima e Aline Bonamin, que cumpriu temporada no último fim de semana, entre 10 e 12 de março no Teatro Cacilda Becker, com enfoque em questões de linguagem em dança.
Atualmente (e já há algum tempo), artistas de dança tem desativado, conceitualmente, valores tradicionais de “sublime” e “etéreo” – por muito tempo presentes em coreografias, treinamentos e poéticas de muitas danças – e virtuosismo na execução e reprodução de ‘passos de dança’, e investigado nas composições de seus trabalhos a fisicalidade do corpo. E, indo mais longe, investigado ainda o que pode denominar-se ‘corpo’ em uma criação coreográfica.
É esta uma forma possível para compreender como Força Estranha estrutura sua dramaturgia, apresentando-se como uma dança que se desenvolve para além dos corpos das intérpretes, que, além de sustentarem, com grande domínio, tempo cênico/performativo, ações e suas pŕoprias presenças em cena, fazem dançar diversos elementos materiais tangíveis – que poderiam ser cenografia se não ocupassem na obra um espaço da mesma relevância dos próprios corpos das artistas – e intangíveis, como luz, som e fumaças – idem.
Esta escolha das artistas é importante em um contexto de expansão de linguagens nas danças, pois evidencia a condição pós-mídia que Bryan-Wilson enxergara na dança de Rainner, e dá continuidade a este movimento. Se antes inovador por empreender tal operação no/a partir do corpo, em Força Estranha, com muita propriedade, as artistas demonstram que ‘corpo’, em poéticas coreográficas, pode ser mais que a dança das bailarinas.
Em Força Estranha, como uma escolha que se mostra ainda mais acertada, Clarice e Aline parecem propor possibilidades para uma operação poética coreográfica, ignorando, no entanto, um eventual compromisso com possíveis novos suportes de representação para a dança, que poderia constituir-se em algum fetiche vanguardista. Elas o fazem, aparentemente, por lidarem com um tempo histórico no qual estes suportes são estabelecidos para serem desmontados, situados para serem deslocados – territórios são estabelecidos para que se empreenda desterritorialização, no que concerne à valores éticos, paradigmas morais e conceitos teóricos ou em estética.
E, para tanto, assim como hoje vemos como pauta progressista na política – por incrível que pareça (!), em contraposição à uma indicação de retrocesso que também se faz fortemente presente em um país dito polarizado – o respeito à fisicalidade de corpos plurais – para além do masculino e feminino, discussão que as artistas tangenciam ao apresentarem-se em dupla, uma vestindo figurino rosa e outra figurino azul, cores que aparecem também em luzes no trabalho, e podem remeter à um certo discurso reacionário sobre meninos e meninas inaceitalvemente proferido pelo governo, ainda bem, passado – Força Estranha se vale de uma proposta dramaturgica que poderíamos denominar como de ‘produção de presenças’, lembrando o conceito presente em diversas formas contemporâneas de arte.
De início, a partir desta ‘brincadeira’ de Clarice e Aline com as cores, podemos visualizar em Força Estranha a importância de uma dramaturgia coreográfica que se guia pela materialidade dos ‘elementos coreografados’ – corpos, figurinos, luzes, cores, sons, uma bandeira vermelha tremulada, um pedaço de linóleo, laser, fumaças, etc.
Lidamos no Ocidente com uma dificuldade grande em articular discursos sobre as coisas. Parece que existe a necessidade de termos sempre, digamos, ‘discursos verbais’ sobre o mundo e parece também que temos dificuldades em lidar com discursos plurais, de modo que além de discurso verbal necessitamos que um único discurso desmonte outros e se sobressaia como ‘verdade’.
Força Estranha nos mostra que, por meio das materialidades, inclusive dos corpos, e da relação com estas, podemos operar por caminhos de ‘discursos possíveis’, da ordem do sensível, nos quais não existem verdades mas possibilidades de criação de sentido, de modo que até mesmo os sentidos talvez propostos pelas artistas possam ser ressignificados, uma vez que a obra não ‘fala sobre algo’, ela é ‘esse próprio algo’ e quem fala por meio dela somos nós, cada um, com espaço para seus repertórios, suas inteligências, nos resguardando de um ‘comum’ no qual estejamos, concomitantemente, ensejados e alheados em nossas subjetividades.
Torna-se de primeira importância esta emancipação de qualquer comum pré-construído em um momento no qual todos nós estamos cada vez mais contaminados, em nossas cognições, pela reprodução da lógica dos algoritmos.
Uma força estranha parece ainda mover e fazer mover artistas e público ao encontro com possibilidades abertas de caminhos em dança. Algo a ser celebrado, após um período de uma triste iconografia na política que retirou de muitos de nós energia vital e potência criadora. Período o qual ainda sentimos reverberar e que deve levar tempo pra ser superado, se, como podemos desejar, o for. Esta força é estranha, talvez, pois não se apresenta como direção a ser seguida, mas como exercício de uma forma de existência em dança que aponta para um horizonte a se (re)construir.
Pela propriedade de abertura dramaturgica que vemos em trabalhos como Força Estranha, mas não só, e esta observação é importante, por demandarmos hoje pluralidade como valor próprio da democracia – depois de sérias ameaças e ataques à nosso Estado democrático – talvez possamos ainda preservar a liberdade de artistas que apresentam hoje obras que há algum tempo não seriam bem recebidas como obras de dança. Este é um legítimo movimento de expansão do campo e de tudo que o compõe ou possa vir a compor: corpo pode ser muita coisa nas criações em dança. E dança pode ser muita coisa, igualmente.
Por fim, como não comentar a importãncia do espaço de encontro que é o próprio ato de ir e estar no teatro? Em um momento pós-pandemia da Covid-19, que nos impôs sérias restrições e um hibridismo nas formas de encontro, entre o presencial e o virtual, e que resultou na desarticulação de muitos espaços de passagem e de troca. Estar presente novamente em espaços, exercitando encontros que disparam trocas entre artistas e público, estes entre si, e nas conversas após a apresentação, nos mostra que depois de um tempo longo de desmonte em artes e cultura no Brasil, estar junto pode ser o caminho para reverter muito do que se perdeu nestes tempos sombrios pelos quais, queremos crer, já passamos.
Talvez seja esta a Força Estranha que ainda leva artistas a dançarem, cantarem, criarem e todos nós a nos sentirmos vivos!
*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.