Em um mundo que insiste na dicotomia entre razão e sentido, mente e corpo, cultura e natureza, dançar é um ato de resistência. Neste texto, mobilizo dois autores da Antropologia do corpo para nos auxiliar a refletir sobre o potencial que nosso corpo possui perante o que apelidamos de “sociedade sentada”.
Em 1934, um antropólogo francês chamado Marcel Mauss publicou um ensaio que se tornou um clássico, chamado As Técnicas do Corpo. Basicamente, o autor levanta algumas das diversas formas que as sociedades pelo mundo utilizam e moldam o corpo. Os exemplos que aparecem nesse texto são bastante explicativos, e vão desde a marcha de soldados até as variadas posições para uma mulher dar à luz, dar de mamar e desmamar; passando por maneiras de dormir, atividades físicas, higiene corporal e, inclusive, reprodução. A argumentação muito clara de Mauss nos leva a concluir que o corpo e suas técnicas são construídos social e culturalmente. O que isso significa? Que há menos de “natureza” no corpo do que imaginamos. O corpo é variável.
Essa proposição faz-nos repensar a nossa própria forma de lidar com o corpo: como nós, não apenas como indivíduos, mas como sociedade, temos nos relacionado com o corpo? O que nós definimos como corpo? Será que o próprio conceito de corpo é o mesmo em todas as sociedades e culturas? Seria o corpo, então, uma base comum e universal a todos, ou ele varia culturalmente?
Algumas dessas perguntas são respondidas por David Le Breton, outro autor francês, que se dedica a compreender o corpo na sociedade moderna. O corpo para as sociedades ocidentais é um suporte para a individualidade, constituindo-se uma fronteira bem demarcada entre si e o mundo, em oposição à mente (ou alma, espírito, como preferirem chamar). Segundo Le Breton (2012), o corpo para nós atua como uma fronteira que isola o indivíduo em relação aos outros, em relação ao cosmo (ambiente), e em relação a ele mesmo (o sujeito tem um corpo, no lugar de o sujeito é o corpo).
Ele destaca a forma com que falamos do corpo: uma pessoa tem um corpo, segundo um modelo de posse. Parece que nós, tão racionalistas e cartesianos, nos esquecemos de que, mais do que ter um corpo, somos um corpo. Nós separamos o corpo da mente como duas coisas opostas. É interessante pensar que a grande maioria de sociedades tradicionais (isto é, os que não são modernos, ocidentais, capitalistas) não fazem essa distinção.
A dança nesse contexto
Por mais que estejamos inseridos em uma sociedade dita ocidental, defendo que os bailarinos não são tão dualistas assim ao separar o corpo da mente. Em muitos momentos, essas duas esferas se confundem até se tornarem indistinguíveis. Como escreve Klauss Vianna:
“o domínio da arte da dança, em nossos dias, obedece a certas regras e convenções em função de um ideal estético antecipadamente suposto e preposto. Mas é possível pensar a dança para além desses limites, como uma das raras atividades em que o ser humano se engaja plenamente de corpo, espírito e emoção” (VIANNA, p. 105).
Nossa corporalidade é muito diferente daquela da “sociedade sentada”. Mais do que considerar o corpo um instrumento de trabalho que deve ser administrado, nós somos sujeitos muito mais próximos da esfera corporal, sensível, material. Isso se torna claro na forma com que lidamos com nossas dores. Para qualquer tipo de dança, a dor está presente cotidianamente. Ela está tão próxima de nós que sabemos diferenciar a dor boa (muscular, de trabalho) da dor ruim (sinal de lesões chegando!). E ainda somos capazes de lidar com aquelas dores que sempre nos acompanham de maneira crônica e que aprendemos, com o tempo, a administrar.
No entanto, estamos rodeados por uma sociedade que decepa o corpo do indivíduo, e em que a medicina se constitui em um saber oficial e legítimo sobre as questões corporais. A dor, nesse contexto, aparece como algo que deve ser anestesiado imediatamente e evitado sempre. Não se aprende a ouvir a dor – nem a dor física, nem a emocional (existem críticas na psicologia a respeito da medicalização/patologização da vida que merecem um texto à parte). Por mais que pensemos na dor como algo evidentemente fisiológico, ela também é um produto social:
“Ora, a dor é decerto ‘natureza’ no sentido mais geral do termo (um sentido tão geral, a bem da verdade, que perde qualquer conotação explicativa); mas não há motivo para presumir que não seja também, ao menos em igual medida, ‘cultura’ (…) A dor, como outros acasos humanos, também se aprende” (GUERCI e CONSIGLIERE, p. 65).
O já citado Le Breton reforça a ideia de que a dor não é objetiva; ela é gerada por uma teia de fatores sociais, culturais, psicológicos e, claro, biológicos. O autor é crítico a uma medicina objetivista e cartesiana, que se baseia na divisão entre mente e corpo. Conforme ele defende, “a dor não está limitada a um órgão ou função, ela é também moral” (LE BRETON, 2009, p. 325).
Talvez os bailarinos não estejam totalmente cientes de que a dança – incluo o ballet clássico nisso! – é, de saída, um ato político. Saber sentir, ouvir, entender o corpo, e insistir na condição corporal da vida é, em si, um foco de potencialidade de transformação social muito profundo. Bailarino, seu corpo é uma ferramenta muito poderosa! Use-o bem!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GUERCI, A.; CONSIGLIERE, S. Por uma antropologia do corpo. Ilha. Florianópolis, n.0, outubro de 1999. p.57-72 Tradução: Oscar Calavia Sáez.
LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Tradução: Fábio dos Santos Creder Lopes. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
LE BRETON, David. Entre la douleur et souffrance: approche anthropologique. L’information psychiatrique 2009/4 (Volume 85), p. 323-328. DOI 10.3917/inpsy.8504.0323
MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2017.
VIANNA, Klauss [em colaboração com Marco Antonio de Carvalho]. A dança. 6. Ed. São Paulo: Summus, 2005.
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