Bailarina e Mãe

Crédito das Fotos: Flávia Scheye e seus dois filhos no espetáculo Puerpério, da Cia Silenciosas. Foto Luciano Fonseca.

Eu sou a Flávia, e sou bailarina.

Como todos sabemos, desde o século XIX, a figura da bailarina está vinculada a imagem de uma criatura bela, de leveza e graciosidade extraordinárias.

Contudo, como também sabemos, essa bailarina é uma criação que emerge de um corpo real, material.  A abstração que a torna fantástica só é possível por conta dos recursos da técnica corporal do balé clássico que envolvem, por exemplo, construções de oposições para que, mesmo instável, o corpo que dança permaneça equilibrado e ereto a partir de um pequeno apoio das pontas dos pés. A bailarina não demonstra esforço algum, o que faz com que os recursos técnicos sejam “escondidos” do público que deve observar apenas seu efeito etéreo, inabalável.

Apesar de concebida sempre num sentido apolíneo e unidirecional, a bailarina aponta para uma situação de fragilidade, supondo o equilíbrio facilmente abalável embora nunca fosse efetivamente abalado na época; além de supor uma polaridade significativa de forte conotação romântica: de um lado, a graça e leveza de seu efeito; de outro, sua dor e a autosuperação, devido à sua condição anatômica pouco natural.

Sou Flávia, mãe.

Há um ano e 11 meses, meu corpo que veio sendo construído demoradamente ao longo de 36 anos, se transfigurou em alguma outra coisa que abrigou dois seres por 8 meses completos.


Flávia Scheye em cena do espetáculo “Nove”, da Cia Silenciosas. Foto Raphael Dutra.

Depois dessa gestação, fui cortada ao meio e esvaziada. A cicatriz aparece no espelho, assim como as olheiras que vieram depois, junto com os peitos que murcharam pela amamentação de dois bichinhos vorazes pela vida.

O corpo não conta histórias, ele só fala de si. Só posso dançar a mim mesma.

É, portanto, a materialidade do meu corpo, noções dos ossos, músculos, órgãos; seus pesos, deslizes e apoios que dão forma e sentido à minha dança:

Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? (FOUCAULT,2015 pg.7).

Ainda reconheço a “bailarina” como um dos muitos aspectos que me constitui, ela emerge dos alinhamentos específicos que construí com o treinamento do balé. Mas apesar do meu corpo dispor de algumas características que definem a “bailarina” – sou capaz de dançar nas pontas dos pés, e fazer movimentos leves e graciosos – há algo que me escapa, pois a materialidade desse corpo denuncia que a bailarina romântica só existe na dança, na ponta dos pés.

Ela é etérea. Enquanto ideal, ela pode ser. Eu, não. Em meu corpo, ela representa apenas uma utopia.

A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas é um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potência, infinito em sua duração, desligado, invisível, protegido, sempre transfigurado; e é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a mais inextirpável no coração dos homens, seja precisamente a utopia de um corpo incorpóreo (FOUCAULT, 2015,pg.1).


Flávia Scheye e seus dois filhos em cena do espetáculo “Puerpério”, da Cia Silenciosas. Foto Luciano Fonseca.


A utopia da bailarina serve como ponto de partida para um questionamento sobre os aspectos romantizados de um corpo que foi cortado ao meio e que murchou. Os conflitos despertados quando comparo aquilo que sou e aquilo que posso criar a respeito de mim mesma configuram um corpo real, vivo e em transformação.

Mas, se fosse preciso descer mais uma vez abaixo das vestimentas, se fosse preciso alcançar a própria carne, e então se veria que em alguns casos,em seu ponto limite, é o próprio corpo que volta contra si seu poder utópico e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe está reservado. Então, o corpo, em sua materialidade, em sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias (FOUCAULT, 2015, pg.6).

Sou uma bailarina que perdeu o eixo e a forma. Uma bailarina que deixou de resistir à gravidade e que, agora, aponta para as próprias fraquezas e angústias.

Minha dança trata se, pois, de tombar; mas também de me levantar, só que ao ascender novamente, ressurjo invertida. Minha vida nesse momento é um ato branco, embaralhado e vertiginoso, que tenta, numa conversa entre presente e passado, instaurar uma dialética corporal, para estabelecer um diálogo do que é possível. 


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BIBLIOGRAFIA

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico. Disponível em: https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2015/06/15/o-corpo-utopico-michel-foucault/.

João Guimarães. O Espelho. Em: Primeiras Estórias. Editora Nova Fronteira. 14o edição. Rio de Janeiro, 1985, pg. 65 – 72.

Flávia Scheye

Flávia Scheye

Ver Perfil

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/ USP), desde 2017. Mestra em Artes Cênicas (ECA/ USP – 2014). Graduada pelo Curso de Comunicação das Artes do Corpo na Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP – 2008).Desde 2015, é professora nos cursos de Dança e Teatro da Universidade Anhembi Morumbi. Integrante do Silenciosas (direção de Diogo Granato), desde 2014. Colaborou com a fundação do Centro de Estudos do Balé (coordenação de Zélia Monteiro), onde atua como pesquisadora e professora.Pesquisadora do Laboratório de Dramaturgia do Corpo (LADCOR/USP).Atua como bailarina no cenário da dança contemporânea de São Paulo desde 2010.