A passagem de Jordi Gali por São Paulo mexeu com o público presente na abertura da enxuta décima edição/2017 do Festival Contemporâneo de Dança de São Paulo, uma iniciativa da dupla Adriana Grechi e Amaury Cacciacarro Filho. Arquitetura, agrimensura, precisão, corpo, objetos, madeira, borracha, pedra, precisão estavam lá, bem como paradigmas científicos provenientes da Física e da Matemática, o equilíbrio resultante da oposição entre forças contrárias, a potência e a resistência.
Em conversa Jordi Gali, que já dançou com Wim Vandekeybus, Anne Teresa De Keersmaeker e Maguy Marin, apontou como um equívoco muito grande o de transportar o vocabulário aprendido e praticado em aulas de dança ao construir uma peça. São coisas distintas, diz Jordi. Entender o que a peça pede conduzirá ao modo de desenvolvê-la, em vez de vesti-la com passos e sequências provenientes das técnicas codificadas de dança. Deixar de lado as bagagens, esquecê-las. Jordi não constrói suas peças com passos e movimentos repertoriáveis, próprios aos códigos das várias linguagens da dança.
A peça “T” de Jordi Gali, a única destinada a apresentações em espaços internos, levou de três a quatro anos de gestação e estreou em 2008. Naquele momento houve poucas apresentações, cerca de apenas quatro. Não se sabia ao certo como enquadrá-la, categoriza-la. É dança? Há alguns anos, Jordi foi convidado a apresentar o seu “T” na cúpula do Théâtre de la Ville, em Paris. A primeira imagem que o público vai encontrar quando entra na sala, é poderosa. Colocado no centro do espaço Jordi, de costas, equilibra nos ombros uma viga de madeira de cerca de três metros de comprimento, sem tocá-la com as mãos.
O bailarino-coreógrafo, espanhol da Catalunha, desenvolve hoje o próprio trabalho na companhia que tem o sugestivo título de Arrangement Provisoire. Ciel, Abscisse, Stance e Maibaum ou árvore de Maio, que conta com cinco integrantes em seu elenco, são as denominações de outras de suas peças. Diferentes entre si, mas mantendo o mesmo sopro, o mesmo estofo, a mesma coerência. 22 Cailloux (22 Pedras), é o título daquela que serviu de apoio à composição que abriu o Festival Contemporâneo de São Paulo em 10 de novembro último na Sala Paschoal Carlos Magno do Teatro Sérgio Cardoso, na capital paulista. Repaginada às pressas, devido à não liberação, pela alfândega do Aeroporto de Guarulhos, do cenário de “T”, a peça apresentada na estreia guarda a mesma precisão de “T” mas, o fato de contar em seu cenário apenas com três vigas de madeira, pedras e algumas cordas, torna-a menos previsível pois, no caso de “T”, o cenário encontra-se exposto inteiro desde o início.
Afastar o reconhecível habilita o encontro de novas matérias. Abrir mão do aparato pedagógico familiar conduzirá à elaboração de uma linguagem própria. A questão aqui colocada concerne à singularidade da autoria. Quando se trata de uma peça em grupo, o coreógrafo propositor tem a tarefa e a responsabilidade de orientar o elenco a descobrir elementos coreográficos condizentes com o que a peça demanda. Se, ao término daquele trabalho um dançarino lançará o discurso de que o coreógrafo “roubou” o material que lhe era próprio, verá que este mesmo material não tem existência dissociado das circunstâncias que o fizeram surgir, motivado e estimulado que foi por aquele contexto específico que lhe concedeu sentido. Por extensão, persiste o despojamento. Primeiro, o coreógrafo propositor. A seguir, o dançarino quando inicia uma nova trilha.
Ao compor a sua obra-farol que foi May B em 1981, Maguy Marin abriu mão de todo o aparato do Ballet clássico inerente à sua história pessoal. Voltou-se a movimentos pedestres, cotidianos e um pouco da dança étnica. Não foi difícil para a coreógrafa desembaraçar-se de algo que dominava com excelência, pois nada mais havia a avançar naquela linguagem específica, a do balé diferentemente, por exemplo, de um Maurice Béjart, que muito se esforçou para adquirir a técnica acadêmica, que conservou como apoio coreográfico.
A morte do autor coincidiu com a disrupção pós-moderna, segundo Roland Barthes (1915-1980). Para o filósofo o que conta não é o autor mas a escrita e, sobretudo, o leitor: ”o autor entra em sua própria morte, a escrita começa […] é a linguagem que fala, não o autor” [1]. Coincidentemente, o coreógrafo Maurice Béjart, apesar de imprimir em suas obras sua assinatura inconfundível, questionou também a própria questão da autoria: “Em resumo, o importante é que as coisas existam, que um espetáculo exista. Bagatelas esses tais who´s who?” [2]. Tal afirmação, curiosamente, converge para o redirecionamento do problema da autoria. Em seu artigo “A Paixão do Real”, a crítica de arte francesa Catherine Francblin sustenta a tese de que os artistas, ao integrarem o real em suas obras, provocaram o fim da noção de autor e a “consequente consagração do espectador”, chegando a afirmar que “a obra mais real é quase sempre, no espírito dos artistas, uma obra não assinada”. Jacques Derrida (1930-2004) elaborou uma filosofia da escrita na qual o sujeito é negado e, por seu lado, Michel Foucault citou a frase referencial de Samuel Beckett (1906-1989): “Que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala”, acrescentando que “a partir do momento em que o sujeito absoluto já não existe mais, o sujeito coletivo deve substituir o sujeito individual” [3].
Resta saber se é hipocrisia negar a inscrição da sua marca, buscar a própria singularidade. É certo que Jordi Gali, em “T”, afirma a sua.
[1] BARTHES, Roland. La mort de l´auteur.em Éssais critiques IV, Le Bruissement de la langue, Paris, Seuil, 1984, p. 61 (tr. nossa). Apud PACQUEMENT, Alfred in Sophie Calle M´as Tu vue ? Paris : Éditions du Centre Pompidou, Éditions Xavier Barral, 2003, p. 18. Idem.
[2] BÉJART, Maurice. Um instante na vida do outro.Tradução de Suzana Martins. Rio de Janeiro : Ed. Nova Fronteira, 1981, p.. 83.
[3] FOUCAULT, Michel, conferência “Quest-ce qu´un auteur ? » (1969), publicada em Dits et Écrits, 1954-1988, vol. I, Paris-Gallimard, col. « NRF », p. 789 (tr. nossa).
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